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O que seria do bebé ou da pequena criança se não viessem, à nascença, munidos de mecanismos de organização/defesa que os ajudassem na defesa da sua incompreensibilidade? Atiro para o ar que a humanidade, como a conhecemos, não existiria.
E porquê “incompreensibilidade”? É que nós, os adultos chatos e as crianças, vivemos em mundos diferentes. Até o nosso código de pensamento difere. Se quisermos ainda, dentro desse mundo infantil existem microetapas, outros micromundos distintos de evolução, até chegarmos ao grande mundo mais cognitivo e de maior constância, sem grandes mutações, do adulto chato.
Só que, muitas vezes, este adulto não se lembra de que ele e as crianças pertencem a mundos distintos e pensa que pode “adultizar” a criança. Ou seja, puxar à força a criança para o seu mundo, a qual não consegue, nem está preparada para o introjetar dessa maneira. Um pouco à semelhança das conversões religiosas em que se faz imperar a crença num deus pela superioridade de uma das partes.
Ignoramos a existência de um mundo psíquico diferente do nosso, o do adulto, e por isso exigimos aos outros seres de outros mundos, para nós invisíveis, que nos compreendam. É a nossa forma de chegarmos até eles. Na verdade não chegamos nada. Eles é que têm de crescer como fermento de acção rápida para se encaixarem no nosso mundo chato.
Bem-vindos sejam, então, os mecanismos de organização/defesa que previnem sufocos de maior nestes seres pequenos obrigados a dar pulos de grande.
O que depois o adulto também não sabe é que estes benfeitores mecanismos de organização/defesa são como tumores, que de benignos podem se tornar malignos. Se a sua função primária é, de facto, a de organização da complexidade do mundo, a sua prevalência e intensificação fá-los degenerar em mecanismo meramente de defesa e ai temos patologia. Patologia essa que normalmente não se manifesta logo, então “está tudo bem”… e que se manifesta anos depois quando a sintomatologia vem ao de cima, aparentemente rompendo qualquer consciência de correlação entre causa-efeito.
Tal como Levi Strauss criticou o significado da palavra “primitivo”, defendendo que os povos antigos eram evoluídos para o conhecimento vigente e que os sujeitos actuais seriam ignorantes ao se superiorizarem por comparação aos mesmos quando os denominavam com o significante e significado de primitivos, também a criança nos seus processos/etapas/vocábulos é altamente sofisticada. Somos nós, deste lado, que não conseguimos entender tal coisa. Tratam-se de evoluções primeiras, que como qualquer processo evolutivo têm de maturar com tempo/espaço para serem consolidadas. Acelerar esse desenvolvimento natural é traumatizar etapas de crescimento, apelando à conversão de mecanismos de organização em defesa. E se há defesa em excesso, há patologia.
Existem várias razões para este unilateralismo relacional mais ou menos inconsciente. Desde a velha história do receio dos adultos em que se as crianças não forem instruídas no devido tempo se irão tornar nuns delinquentes de primeira; ou pelo facto de projectarem na criança os seus altos standards idealizados internamente; ou por uma impaciência incapacitante da consciência da realidade diferenciada do outro; ou simplesmente por uma rigidificação superegóica impeditiva de aceitar desvios nas expectativas depositadas nestes seres de outros planetas.
Na verdade, muito se perde ao não sermos nós a entrar no mundo da criança. Se não o conseguimos fazer, é porque já nos afastamos a nossa própria criança interna. Já teremos demasiada defesa, demasiado esmagamento de um mundo menos cognitivo e mais sonhador. Mas quem é que nos dão direito de ao termos morto a nossa criança interna, de “matarmos” agora a criança que se aflora diante de nós? É porque não sabemos. É porque não sabemos mais do que este nosso mundo mundano. Pela projecção da doença das defesas pessoais iremos adoecer a criança que absorve, se nutre e se torna no reflexo do nosso ser. A racionalidade monopolizará, perdendo lugar a espontaneidade, a brincadeira, a liberdade do pensar, o pensamento em associação livre.
Muito teríamos a ganhar se não obrigássemos ao fim impiedoso desta democracia de mundos. Se pudéssemos aprender o brincar em vez da conta de multiplicar, o sonhar em vez do estudo correlativo, o disparate em vez da ortodoxia. Não sabemos mesmo o que estamos a perder e muito menos o que acabamos por fazer perder.
Se não compreendermos que as crianças têm outro pensar e que nós temos mais responsabilidade em chegar até elas do que as puxar para o nosso mundo chato das regras, então nós é que somos os primitivos desta história.