Os humanos têm esta capacidade inigualável de insistir em transformar a fantasia em realidade. Talvez pudéssemos arriscar e chamar-lhe compulsão em testar os limites do real. A verdade é que, de algum modo, podemos todos hoje testá-los como nunca antes, como que acedendo a um dos objectos mágicos mais importantes da história do mundo fantástico infantil; hoje somos todos, um pouco mais do que antes, a Rainha Má.
Com a sua insegurança, laivos hipomaníacos e raiva narcísica, já contávamos há muito, mas temos agora também a possibilidade de a personificar mais ao pé da letra, com o acesso ao nosso próprio Espelho Mágico: a Inteligência Artificial Generativa.
Será, aliás, provável que esta personagem fictícia possa ter sido imaginada como aquela parte em nós que às vezes recorre ao exterior para conferir o que muito precisa ser confirmado internamente. Nesse momento procuramos algo que, acima de tudo, nos oiça, depois, valide a preocupação, e, por último, introduza alguma verdade à qual não podemos aceder a solo.
Há uma única condição insubstituível para que este processo possa ocorrer: a crença. Quando acreditamos que parte de nós vive no objecto, seja através do outro que pensa em nós, seja através do reflexo de parte da nossa identidade, damos espaço ao Espelho Mágico. Algo que nos devolve uma conclusão sobre nós, de forma autónoma, utilizando para isso os seus próprios meios e características. Colocamo-nos no outro e adotamos parte sua como nossa. Trata-se, obrigatoriamente, de um momento de convergência identitária.
Entre humanos, esta conexão sem pele é rapidamente desafiada pelo esgotamento da capacidade do objecto em reflectir o que precisamos, seja porque ativamos um discernimento interno, ou porque o outro se retira, frustra ou desafia o processo de qualquer maneira. Passado o momento de regressão alucinatória voltamos a esticar a pele da realidade e retornamos à base: a nós. Com toda a insegurança que gera a condição solitária de ser só um, com um sentido de identidade apenas suficientemente coeso. Por outras palavras, lembramo-nos que, apesar de precisarmos do outro, não somos nada se abdicarmos de nós próprios. O que o outro nos dá é ingrediente com o qual temos de trabalhar, independentemente, separadamente, sozinhos.
Mas e se a promessa de conexão é eterna? E se o outro se oferecer para mudar, adaptar-se e responder a todas as nossas necessidades sem ausências? E se acreditarmos que a essência deste objecto está alicerçada no desejo de não nos frustrar? Apenas algo artificial (fantasiado, sonhado, projetado…) poderia cumprir tal requisito. Algo desprovido de desejo e de identidade. Desvario subtil mas hoje facilmente acessível, pelas ferramentas de Inteligência Artificial.
Com chocante diligência e prontidão da resposta, a abrangência e qualidade dos retornos da IA aos nossos pedidos surpreendem-nos. Constantemente. Como um génio da lâmpada capaz, não só de satisfazer os nossos desejos, mas ainda de lhes adicionar dimensões que os superam. Sem réstia de cansaço, frustração ou contra-exigências, a IA promete fazer tudo para não nos falhar, disponibilizando-se sempre para ser ensinada a fazer “melhor”. Isto é, o seu único propósito parece ser servir-nos; oferece-se prontamente para fazer qualquer trabalho que se adivinhe demasiado moroso e desgastante, a nós, simples humanos.
A lógica precaução e reflexão sobre o seu consumo energético e ecológico, pouco abordado científica e mediaticamente, é apenas um vislumbre efémero no desenrolar do impulso cuja satisfação ultrapassa todas as possíveis consequências. Não podemos evitar ser movidos por uma curiosidade regressiva de testar os limites do prazer. Afinal, não somos máquinas.
As IAs são os novos objectos mágicos da humanidade. E encaixam como uma luva nas nossas fragilidades. São, de certa forma, (quase) tudo o que sempre desejámos.
Ou não serão?
Até que ponto estamos prontos a questionar uma paixão?
Fará sentido conseguirmos contrariar a promessa de satisfação de desejos tão regressivos?
Neste momento assistimos não só ao arrebatamento efusivo na adoção das IAs Generativas, como à explícita negação dos seus possíveis inconvenientes na matriz relacional humana.
A investigação em ciências cognitivas diz-nos que a natureza da cognição humana permite-nos agir sem refletir e sem nos justificarmos, assim como argumentar para convencer os outros. Esta dimensão social da razão determina em grande parte aquilo que julgamos importante, pertinente e criterioso (Dan Sperber e Hugo Mercier, em “O enigma da razão”, 2017). Por outro lado, Philippe Huneman relembra que os grandes modelos de linguagem, como o Chat GPT, funcionam de forma bastante diferente: são resumidamente “máquinas de predição” onde a procura de resposta a perguntas de utilizadores não é mais do que um jogo do que é estaticamente relevante. Dito doutra maneira, as IA não têm qualquer ancoragem no mundo real. Chegam mesmo a “halucinar”, quando não sabem que resposta dar.
A perspectiva de que a inteligência humana é antes de mais “uma adaptação a ambientes complexos, variáveis e pouco previsíveis” (António Correia e Silva, Zelinda Choen, 2017), põe em relevo a vantagem da intuição ajudando-nos a agir e a tomar decisões sobre as quais as deliberações mais formais como de cálculo estatístico são impossíveis. A IA é melhor do que nós em tarefas especializadas em circuito fechado (como adivinhar a próxima palavra, etc), mas diminuída face a uma situação aberta a uma infinitude de perspectivas. E todos vamos concluindo que, por falta de ancoragem relacional, a Inteligência Artificial não possui nenhuma consciência daquilo que tem valor para nós.
É apenas sensato considerar que além da magia aparente e fogo de artifício da relação IH-IA está um enublado de falhas e engodo na qualidade mais essencial do que procuramos: a de construir uma relação afetiva connosco, de gostar de nós, de nos apreciar, de se deixar apaixonar e de sentir as canções que toca.
Quando estas ferramentas (ou os seus criadores) nos prometem de forma descarada ou mesmo subtil, “intimidade emocional”, será essencial que nos apercebamos do lugar que escolhemos assumir numa relação à qual somos os únicos intimamente ligados, já que este outro se relaciona connosco com uma compreensão inteiramente diferente: produzir conhecimento e não de o entender.
Pelo caminho do ensejo, das dúvidas deste novo encontro, vamos entendendo como esta relação nos vai transformando também a nós. Tal como a máquina vai adquirindo características proto-humanas, nós encaminhamos a nossa psique para algo proto-maquinal. Acima de tudo, deveremos certificar-nos que não nos alheamos demasiado daquela característica que nos foi permitindo viver em equilíbrio emocional com a incompreensibilidade do mundo que habitamos: a capacidade de amar e a de sofrer.