“No man is an island”

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Existem temas bastante sensíveis e que por serem bandeiras, por vezes é quase sugestionado ser interdita uma reflexão dos mesmos. 
Hoje ouso fazer uma reflexão sobre o conceito “liberdade”, esse bem precioso que tantas vezes implica uma luta, um derramamento de sangue, para ser alcançado. Todos procuramos essa conquista, quer na realidade exterior, mas de igual ou maior forma no nosso mundo interno, dentro da nossa psique.
Nos dias que correm, em que várias frentes de revolta se afirmam e nos assolam uma periclitante harmonia existente, pode ser proeminente nos debruçarmos sobre este tema.

Talvez o conceito de liberdade como o conhecemos esteja demasiado simplificado ao tamanho reduzido do seu significante, assim, como nos parece ser indissociável a ideia de liberdade com a noção de espaço. Um espaço de acção, de pensamento, de sentir, de expressar, de se ser. Mas, por outro lado, a expressão dessa liberdade, se for completamente livre, também contém em si a capacidade de replicar o seu oposto no(s) outro(s). A ausência do outro poder ser. A historia têm-nos trazido várias destas experiências, onde a expressão forte da convicção de alguns, conseguem anular a liberdade de pessoas. De uma forma ou de outra acontece. Está a acontecer.
O conceito liberdade tem em si, então, o potencial de propor algo e o seu negativo.

Assim, o que é a liberdade? Será a viabilidade de tudo? Mas nesse caso estaríamos a jogar um jogo sem regras. E um jogo sem regras não é jogo. Não é jogável. Se cada jogador fizer as suas próprias regras não existe articulação de denominadores comuns. Deixa de haver relação entre participantes. Está cada um por si.
A ideia de liberdade contêm em si tanto um princípio imprescindível como a ameaça à sua própria premissa. Dada esta ambiguidade, os conceitos precisam de ser refletidos e não agidos ao sabor da sua conveniência. Se os agirmos estaremos a ser parciais e a reduzir a sua complexidade de interpretação.

Liberdade é diferente de incondicionalismo. Relembro uma frase de uma paciente minha: “a liberdade é termos a possibilidade de conduzir na estrada, mas também de respeitar as regras de transito”.
Num mundo que cada vez mais vozes reclamam esta ideia de serem livres, em que tudo e todos têm direito a manifestar os seus ideais, importa uma reflexão sobre estes movimentos, se não, somos precisamente ameaçados pela força de actos convictos que nos relembram a velha ideia dos extremos se tocarem e da liberdade egocentrada poder ser usada para que as nossas partes menos saudáveis se afirmem num acto de poder, ameaçando assim o deslize do ténue equilíbrio vigente.

A ideia de se ser completamente livre é uma perspectiva que podemos apelidar de liberdade primária, em que os limites e as necessidades do outro não terão uma existência na consciência do sujeito.
Se quisermos viver livres, a nossa liberdade terá de ser pensada. Liberdade tem implícita, em si mesma, a condição de comunidade. Liberdade a sós não é liberdade. Liberdade numa ilha não é liberdade. É ser livre de ninguém. Interessa-nos pensar a liberdade sempre com o(s) outro(s). E essa, será a parte difícil, porque se quisermos estar com o outro, não podemos ser livres. Pelo menos, incondicionalmente livres.
Contudo, se o outro deixar de ser para o sujeito… se o outro se tornar ninguém, ou um continuo dele mesmo, levamos a ilha para o continente e impomos a utopia da relacionalidade à nossa incapacidade da mesma.

Na realidade não estamos em ilha, estamos em jogo, nos seus demais sentidos. A fita métrica que mede o alcance da expressão da minha identidade, no limite será validada pela ética, com acento no sofrimento que esta minha expressão pode causar no outro. Idealmente, isto se aplicaria a qualquer tipologia de animal, seja ele da espécie  humana ou de outra.

Qual o limite da minha liberdade na relação com o outro? Como dizia o meu professor Coimbra de Matos, um sádico em relação com um masoquista não está errado. Ambos cumprem uma função para o outro. Ambos consentem a expressão do outro. De certa e estranha forma, ambos respeitam os limites um do outro. Talvez o importante será conhecer os limites do outro e até onde ele se sente confortável com a expressão do seu par. Se o nosso esforço for o de nos articularmos nesse exercício, de nos pensarmos com o outro, possivelmente estaremos em vista de uma relação com potencial de construção, porque sabemos jogar. Jogamos o reconhecimento do outro como detentor de direito da sua liberdade, desejo, angustia… identidade. O outro passa a ser e a estar incluido.
Assim, a liberdade pressupõe o(s) outro(s) e sua inclusão. Várias identidades que podem ser ligadas pelos demais formatos relacionais, num investimento bilateral que possibilita a união e a reciprocidade Vs um posicionamento de querer ser investido unilateralmente.

Sermos uma ilha com o outro só possível se o outro se declarar ninguém. A coexistência,  tolerância e aceitação de que todos somos diferentes é essencial para a existência de liberdade das demais identidades. A expectativa de um semelhante a si, num pensamento uníssono que não tolera o diferente é uma repetição de um agir fusional em resposta a uma profunda insegurança interna. O feminino é diferente do masculino, as mulheres e homens são diferentes entre si. Se a nossa expectativa passar por encontrarmo-nos no outro, a relação será inviável.

No crescente facilitismo tecnológico actual torna-se perigosa a massificação de aglomerados que pregam uma crença ultra convicta, comparável aos, outrora, missionários católicos empreendedores da evangelização às demais etnias.
Se não existir um reconhecimento do outro, a nossa liberdade toca no outro extremo, o da ditadura de uma razão, de uma perspectiva, de um caminho. Para um ser completamente livre, a sua identidade irá agir numa sobreposição das suas leis. Só estas imperam.

Numa relação, sempre que o conceito de liberdade é tido sem limites, o outro do par irá perder esfera identitária. Será necessário um equilíbrio muito ténue dos limites da relação para que ambas as longitudes territoriais possam ser preservadas. É preciso pensar o outro. Pensar a liberdade e agir a liberdade, são noções completamente diferentes.
Pensar ambas as abrangências e nuances identitárias, definindo uma fronteira de tolerância onde se fazem cedências e adaptações com base na compreensão e respeito mutuo é fundamental para qualquer tipo de relação construtiva e duradoura.

A propósito de liberdade agida, recordo uma história do meu analista, em que este partilha uma situação ocorrida logo após o 25 de abril, em que uma mulher se despe, gritando ser livre, alienada da afectação que isso poderia estar a causar para os que a rodeavam.
Se a liberdade é pensada, o seu conceito é muito mais complexo do que o que o seu significante parece aludir. “Liberdade” é sempre condicional. Não nos é possível corresponder ao que o seu significante, em si, transparece, ou fez parecer pelo desgaste do uso, de algo desbalizado. A liberdade ao ser pensada tem sempre amarras que nos protegem a nós e aos outros. O que pode variar é a abrangência desse condicionalismo, que existirá sempre, e que nos terá tornado mais evoluídos segundo Freud. Antes da lei do incesto descrito pelo autor em “Totem e Tabu” ou do uso das parras descrito na Bíblia, teremos estado o mais perto possível de uma liberdade incondicional, um “paraíso” sem regras. Mas, como Freud também disse, sem a formação do superego não teríamos cultura. Não teríamos o grau de consciência que atingimos, que de facto, nos inibe, mas também nos posiciona nas diferentes esferas para com os demais. Talvez este compromisso de equilíbrio seja importante.

Se o conceito de liberdade não nos faz mergulhar numa incondicionalidade de ser, da mesma forma, este não reclama ser sinónimo de nos colocar em condição de reféns. Existirá liberdade dentro de limites.
De algum modo, por detrás da problemática da liberdade, está também implícita a ideia de verdade. Em algumas campanhas de grupos ávidos por mediatismo, a bandeira da verdade é frequentemente erguida com bastante convicção. A verdade contra os negacinonistas, aquando a recente pandemia; a verdade dos nazistas; a verdade das claques de futebol. A verdade do branco face ao preto, quando em nome de um hino de uma verdade partidária, damos um grande chuto nos cinzentos que relativizam esta coisa toda, para pararmos de pensar o complexo.

A verdade, é que não há verdade.

Tudo é relativo. Sempre ouvimos dizer que o vencedor escreve a história. Se Hitler tivesse ganho a guerra, este, hoje, seria herói de alguém. O livro de história está por isso errado. São livros de histórias. A história do João e a história da Maria, e como ambos combinam as suas histórias.
A ignorância é a convicção numa verdade, movida por uma insegurança movediça. E é essa ignorância o maior perigo da humanidade contra a própria humanidade.
Quando ignoramos a nossa destinada ignorância, ignoramos também o Outro e todo o conceito de liberdade é deturpado numa conveniência de pseudo-afirmação egocêntrica fortalecida por uma validação de grupo. A união faz uma força.

Embora, como é consensual e comum de ouvir, que todas as relações sejam complicadas, talvez   não seja imprescindível estarmos livres, sós connosco mesmos, para sermos felizes e positivos.
Se olharmos por um telescópio para chegar mais perto do conhecimento, mais nos apercebemos que mais distante estamos deste. Sabemos muito pouco para sermos detentores de tudo. Somos ignorantes se ignorarmos que não temos a verdade, mas sim uma conjugação de aproximações de verdades que se podem encaixar se tivermos a humildade a permitir que existam regras neste jogo. Se assim for, não perdemos a nossa liberdade se o outro existir. Existimos com o outro. Somos livres com o outro.

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