“Adolescence”: a necessidade de pensarmos o ódio

A adolescência é uma etapa marcante no desenvolvimento. Antes vista como um período “complicado” entre a infância e a adultez, sem identidade própria, é consensual hoje o seu papel na fixação da personalidade, identidade e autonomia. Mas, como a sua precursora biológica, a puberdade, tem uma complexidade que remete para o desconhecido, um estado de desequilíbrio e instabilidade normativos, levando a que seja ignorada ou incompreendida. Ela é, a seguir à primeira infância, a fase de maior desenvolvimento global e a que mais prepara para a autonomia e a vida adulta.

 

A agressividade é uma das marcas desta etapa do desenvolvimento. Age como força motriz e produtiva da autonomia, permitindo que o adolescente conteste os modelos parentais, ainda que muitas vezes em atitudes negativistas e oposicionistas mais ou menos “gratuitas”. A capacidade reflexiva do adolescente é limitada, não só porque depende desta capacidade emocional de questionar os demais com autonomia, como do desenvolvimento de funções cognitivas de regulação emocional e controlo dos impulsos que atingem o pico de maturação após os vinte anos de idade. Assim, o adolescente precisa de poder contestar os pais e assumir algumas condutas de oposição benignas, e em simultâneo, precisa de regras e limites. Os pais funcionam como autoridade, que orienta e dirige e não como os “amigos” dos filhos. Mesmo que isso implique o lidar com o sentimento de que, por vezes, os filhos não gostam deles.

 

Na prática clínica vemos adolescentes que se sentem, muitas vezes, ignorados e incompreendidos pelos próprios pais. Se este sentimento atinge também as relações com pares, causando mais danos na auto-estima, podem desenvolver-se sentimentos de alienação e até de hostilidade sobre o próprio ou os outros. E aqui aproximamo-nos de formas de violência com uma qualidade diferente, retratada na série “Adolescence”, que se tornou viral e cativou recentemente as atenções dos pais e da sociedade, ao ponto de o governo inglês ter anunciado que será transmitida em todas as escolas secundárias do Reino Unido.

 

O contexto social e político atual é conturbado, fracionado e por isso mais violento. Os adolescentes são sempre mais permeáveis a ideologias, por poderem compensar o vazio identitário e a depressividade, que vem luto que é ter que deixar a infância. Mas isso significa que ficam vulneráveis a ideologias grandiosas, porque é empoderador e traz um sentimento de pertença que esbate algumas inseguranças.

 

Nas redes sociais estão presentes movimentos especialmente violentos, como é o caso dos “Incels”: um acrónimo que descreve um grupo de “celibatários involuntários”, de jovens até 30 anos, que cria fóruns na internet onde fantasiam com a prática de maus-tratos às mulheres que não conseguem conquistar, aspeto também retratado na série “Adolescence” ¹. Este grupo circula à boleia da extrema-direita. Na Argentina, um dos poucos países da América Latina a permitir o voto dos adolescentes, o grosso dos votantes em Milei foram homens entre os 16 e os 29 anos ². A força militante dos jovens, denominada “As Forças do Céu”, montou uma forte campanha na rede social TikTok com ajuda de um influencer, ele próprio muito jovem, que se tornou o gestor de comunidades da campanha que viralizou os vídeos do partido. Em Portugal, onde os efeitos da extrema-direita são comparativamente mais ténues, o uso do TikTok como ferramenta de campanha tem crescido e levanta preocupações, já que um recente estudo mostra que os rapazes portugueses são cinco vezes mais propensos a votar na extrema-direita do que as raparigas, o segundo valor mais alto na UE ⁴.

 

Penso ser importante que os pais conheçam e possam pensar criticamente estas influências com os filhos, porque a comunidade online está a chegar aos adolescentes através da sua fragilidade e insegurança. Talvez o impacto que trouxe a série “Adolescence” nasça da nossa própria perceção de que estamos todos, de algum modo, a viver o crescimento do ódio à nossa volta com relativa indiferença, banalidade, à laia de diversão, alheios aos potenciais riscos que isto pode evocar, dentro e fora de nós.

 

 

Referências:

 

¹ Cavalheiro, J., Pisco, C., Durães, M. & Pincha, J. P. (2025, Março 27). A série Adolescência pôs-nos a falar de incels. Quem são eles? Jornal Público.

https://www.publico.pt/2025/03/27/video/serie-adolescencia-falar-incels-quem-sao-eles-20250327-142347

 

² Smink, V. (2023, Novembro 20). Os eleitores jovens que foram fundamentais para vitória de Javier Milei na Argentina. BBC News Brasil.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n4v92wnevo

 

 ³ Carbonell, V.  (2025, Setembro 4). From Provider to Precarious: How young men’s economic decline fuels the anti-feminist backlash. European Policy Centre. https://www.epc.eu/content/From_Precarious_to_Provider_paper.pdf.

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