Solidão e Capacidade de Estar Só

Recentemente tropecei numa publicação da revista inglesa The Economist que tinha o interessantetítulo How does it really feel to be lonely? Um tema que encontro frequentemente na prática clínica e que considerei ser importante trazer à reflexão. 

O artigo faz uma viagem pelo conceito de solidão, dando-lhe múltiplos entendimentos e significados emocionais no contexto actual. 

Apresenta a solidão como o mais recente tabo da nossa sociedade. Considerando que os indivíduos, de uma forma geral, são capazes de falar de tudo, até da morte, mas não são capazes de admitir que estão/ ou se sentem sozinhos. Segundo o autor do artigo será mesmo uma nova epidemia, a lepra do século XXI. Pela sua natureza pouco atraente na dança das relações sociais. A solidão afasta, dirá o artigo. 

O artigo chama a atenção para o elevado número de pessoas que actualmente vivem sozinhas.Sobretudo indivíduos entre os 45 e os 64 anos, sendo um fenómeno que é transversal a todas as faixas etárias.  Fala dos que não admitem a sua solidão perante amigos e familiares;  que a omitem por sentimentos de embaraço ou vergonha. E que não a consideram um motivo suficientemente válido para pedirem ajuda aos serviços de saúde ou procurarem psicoterapia. 

O artigo é extenso e fala da corrida frenética às plataformas amorosas como resposta à solidão, e como essa busca por um parceiro romântico, pode exacerbar paradoxalmente o sentimento: “Vivemos numa cultura onde um número elevado de pessoas estão sozinhas, o que faz com que exista uma tremenda idealização das relações. As pessoas procurarão no outro mais do que aquilo que este poderá oferecer; o que traduz um sonho ilusório/compensatório de uma intimidade plena e sem imperfeições. 

O artigo relata o caso paradigmático de uma jovem de 31 anos, profissionalmente bem sucedida, casa própria, solteira, saída recentemente de uma relação longa, que nos seus planos a levaria potencialmente a uma união e à construção de família. Perdas importantes pelo caminho. Ninguem entende o seu estado de solidão actual, mas o que é certo é que o seu círculo de amigos mais próximo estará na fase de constituir relações de casal duradouras e ter filhos, o que a conduz a um grande sentimento de exclusão e solidão. Ela fala de sentimentos de tristeza, vergonha. Afinal também gostaria de construir a sua família. Em resposta, constrói um perfil numa plataforma amorosa, apresentando-se aos outros como uma mulher feliz, viajada, culta. E revela a solidão que é ter que se apresentar deste modo: a distância entre a imagem que quer dar e a sua realidade emocional actual. 

Quais são os estados internos que acompanham a solidão? É a grande questão que lança o artigo. E uma das mais importantes. As pessoas referem o sentimento de se sentirem pouco importantes para as outras. Relatam ter dificuldades de encaixe social, de se sentirem compreendidas. Sentem-se mal consigo próprias. Começam a sentir que poderão ter defeito, como se algo estivesse errado com elas que justifique o sentimento de rejeição. Há uma nuvem escura que não querem deixar transparecer, o que ainda agudiza mais o sentimento de solidão. É um círculo vicioso que corrói internamente. As pessoas sentem-se pouco amadas e apreciadas/ deixam de querer estar com outras devido à predominância desse sentimento / este aspecto reforça o sentimento de solidão. 

Do ponto de vista sociológico vivemos numa sociedade que valoriza a independência, mas quedespreza o isolamento. O próprio sistema económico, a mobilidade associada a alguns empregos e estilos de vida, promovem o deslaçamento social. Trata-se de um verdadeiro ataque aos vínculos familiares e comunitários. Escolher a liberdade – não estar vinculado a nada- também pode ter como preço a solidão.  É uma dor que penetra e que não se dissipa, um processo mental que se instala fisicamente e psiquicamente roubando a energia e a motivação. O desespero está sempre a bater a porta de quem se encontra nesta condição. 

No entanto, e tal como o artigo bem lembra, existe a solidão, mas também existe os benefícios secundários da solidão. A solidão pode ser usada como um refúgio; pode permitir o evitamento de experiências que possam ser sentidas como excitatórias, mas problemáticas. Algumas pessoas sentem-se seguras na solidão. Numa vertente mais positiva, o próprio sentimento de solidão pode conter em si toda a esperança, na medida em que o indivíduo detecta em si a falta de algo bom que já viveu no passado e deseja recuperar.  

O artigo termina diferenciando de forma muito pertinente o conceito de solidão (dor de estar sozinho),  de solitude ( capacidade de abraçar a solidão).  A solidão é acompanhada por sentimentos de falha e vergonha. As pessoas que se sentem sozinhas, sentem que deviam estar conectadas e que se estão desconectadas ou alienadas, é porque cometeram alguma falha ou fizeram algo de errado.Poderá existir uma combinação de paranóia e o sentimento de julgamento muito acentuado por parte dos outros. O estado de solitude, por outro lado, implica a auto-descoberta e a aceitação da singularidade própria. Tem raiz num processo de auto-descoberta, de expansão do ser. Neste sentido, a solitude está na base das relações: encontrando o indivíduo a sua singularidade, a sua verdade própria, estará preparado para entrar em relações mais profundas e mais autênticas com os outros. 

Um dos benefícios terapêuticos de uma psicoterapia longa poderá ser o de alcançar uma boa“capacidade de estar só”, no sentido da solitude, falada no artigo. Diferente do sentimento de solidão associado ao sofrimento próprio da doença mental, um percurso doloroso que se pode expressar pelo medo de ficar só; angústia de ficar só-abandonado; pela solidão do desencanto amoroso ou até pelo medo da morte. 

Uma boa “capacidade de estar só” traduz um grau de maturidade psíquica que permite aos sujeitos a liberdade de se confrontar com o seu mundo interno sem demasiada angústia. Esta capacidade de estar só vai no sentido da “capacidade de ser o próprio”, pela procura da verdade de si-próprio,  diferente do sentimento penoso da solidão. A capacidade de estar só permite admitir dentro de nós um espaço interno (realidade psíquica), no qual somos simultaneamente espectadores e actores – no sentido de agentes activos – porque podemos conservar um bom objecto interiorizado (uma representação mental de um vínculo suficientemente bom que nos faça companhia interna). A pessoa que internaliza uma representação interna assim é capaz de auto-conhecimento e comunicação entre aspectos próprios dentro de si. É capaz de pensar-se e vivenciar-se, encontrando-se a si mesmo, numa relação íntima e privilegiada com o seu Eu. 

Uma psicoterapia longa, pelas condições estruturais que oferece de constância das sessões e neutralidade do terapeuta, está particularmente adaptado à “visualização” desse espaço interior.   O terapeuta oferece-se a si próprio como uma presença acolhedora e sustinente,  na presença do qual o paciente vai encontrando a possibilidade de estar só (qual criança que experiência estar só na presença da mãe) . A solidão deixa progressivamente de significar medo e abandono, para tornar-se, sempre que possível, espaço potencial de criatividade e autonomia emocional. 

Bibliografia:

Fergusson, Maggie. How does it really feeel to be lonely? The Economist.

Malpique, Celeste (2023). Da Capacidade de Estar Só. Lisboa: Freud & Companhia.

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