Diário de um coração de vidro

3 de Setembro 2024

Hoje não estou para fastios. Acordei com humor de cão. Que ninguém se ponha no meu caminho. Dêem-me uma pequena desculpa. Só um breve argumento, e salto-lhes para a jugular.

Ontem quando finalmente fui à cama pensei: “Agora vou finalmente escapar à maldita realidade”. …Insisto em não me lembrar que a alternativa ao pesadelo diurno é só um: as entranhas de um inimigo que cresce a cada expiração de medo minha. O sonho que me devia proteger, deixa-o crescer dentro de mim. Uma bola de angústia e suplício aumenta, gradualmente. Tenho certeza que adora ver-me sofrer.

Ingenuidade minha. Nem quando fecho os olhos, nos meus sonhos, estou a salvo da maldade do mundo. Dos outros. Persegue-me em forma humana e em forma de onça, de grifo e, o pior, em forma de nada. De nuvem invisível de horror denso, pronta a esganar-me e, a zombar, ver-me morrer.

Quando acordei lembrei-me: toda aquela maldade sou só eu. Sempre. Só eu me destruo e só eu me posso salvar. Sou forte, todos sabem. Levo tudo e todos à frente. Faço-o quando é preciso e faço-o quando me descuido e arrependo… arrependo tanto.

Mas sou absolutamente incapaz face a este monstro, que me debica o fígado diariamente, tal Prometeus, sem que eu consiga oferecer qualquer resistência.

E com a manhã recomeçou. Todos à minha volta tratam de confirmam o que eu sou, mas só o pioram, porque pedem-me que seja mais e acreditam que posso mesmo sê-lo. Odeio-os por isso. Só queria que tivessem a honestidade para me abandonar, de vez.

À tarde caminhava, dolorosamente, pela rua. De fora só se via alguém determinado, talvez concentrado. Mas internamente estou prestes a explodir. Levo adagas no olhar, prontas a defender-me. A matá-los, matando-me a mim, finalmente.

Então surge uma septuagenária. Lembra-me a minha avó. O seu ar inofensivo. Aquela peste, que destratou o meu pai, mas em que só vejo fragilidade. Quebradiça como um biscu. Ali, sozinha e ignorada por toda a sociedade. Tenho de lhe estender a mão. Quando lhe toco misturo a minha fragilidade com a sua. Finalmente, alguém através de quem eu possa chorar. Partir-me. E dou-lhe o que mais ninguém está disposto a dar. Apenas eu. Torno-me a sua única prancha de salvação; o seu tudo!

12 Setembro

Mais um dia a enganar o mundo. A fazê-los crer que sei o que faço. Que não preciso de nada nem ninguém. Idiotas. Não percebem que destruo todas as relações apenas porque preciso tanto delas. Ignoram-me, como à velhinha no passeio. Humanidade desprezível.

28 Setembro

Ao fim do dia penso: sobrevivi. Mas quando me sento à mesa recomeça a sessão de tortura. Contradizem-me. Não tenho do que me queixar. Só me querem ajudar.

Canso-me de os ouvir falar sobre mim, como seu eu não estivesse lá. O que eu “deveria ser”, ou “o que simplesmente tenho de fazer”.

Não preciso que me digam o que estou careca de saber: não faço sentido. Não tenho sentido.

Exigem entre-linhas que lhes diga que a culpa não é sua. Só se querem tranquilizar a si mesmos. Por um ou outro motivo, sempre fui demasiado para eles.

E é então, entre as duas últimas de uma maçã assada meio desfeita e enjoativamente caramelizada, que algo se torna claro para mim: sou intratável. Aqueles momentos em que achei que até conseguia aguentar a minha dor, talvez um dia sair do nevoeiro, eram um engano. Mentia-me. Eles estão certos: os muros são intransponíveis, estou só e assim devo estar. Para não envenenar o mundo à minha volta.

Depois de 3 horas às voltas na cama penso…        apenas preciso que alguém aguente aquela parte de mim que eu não consigo aguentar.

Há uma pessoa. Uma, que parece não ser destrutível por mim. Não só permite que me zangue como não desanda. Só alguém insuportavelmente defeituoso se sujeitaria a tal.

…alguém tal como eu.

Sobra-me o consolo de me relacionar com alguém meio desfeito. Ideia ridícula. Medonha. Mas no final de cada conversa fica muitas vezes a infeliz esperança que também eu, apesar de cronicamente esburacado, me posso ir refazendo.

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