O entendimento dos processos de saúde e doença, ao longo das últimas décadas, felizmente, tem ancorado os seus pressupostos, de forma bastante mais incisiva, numa perspectiva, cada vez menos espartilhada, de eixos de compreensão. O paradigma subliminar ao “Dualismo Cartesiano” – sumptuosamente revogado por António Damásio (1994) em “O Erro de Descartes” – não obstante alguma vigência (lamentável!) nos dias correntes, ainda que de forma escamoteada, em algumas visões bio-médicas, acerca de determinados processos de adoecimento – tem vindo a perder força e, por conseguinte, a alavancar, de forma mais sistematizada, aquelas que poderão ser entendidas como visões integrativas, na conceptualização dos processos de saúde e doença, mantendo foco na inexorável “indistinção corpo-mente”.
Com efeito, refiro-me a “indistinção corpo-mente”, tentando enfatizar que, em cada bocadinho de corpo e, sobretudo, na forma como ele é percepcionado, se inscreve e se faz notar a mente de cada um – com todas as particularidades e idiossincrasias – do mesmo modo que, na vida mental de cada ser humano, o corpo se inscreve, ganha forma e senso de existência. Nesta senda, importará que se debruce a devida atenção, ao modo, através do qual, determinadas características de personalidade, padrões relacionais, emocionais e de dinâmica afectiva se poderão repercutir em “Marcadores de Doença” ou, por outro lado, em “Factores de Organização Saudável”, não perdendo de vista a indissociação entre os vários sistemas psico-fisiológicos (psíquico, neuronal, endócrino e imunológico) imiscuídos em toda essa complexa rede de interacções, (o verdadeiro Processo Psicossomático).
A esta altura, será, absolutamente, premente que se coloquem as seguintes questões:
– Em que medida o Stress poderá ser um interveniente, ou condição “Sine qua non” em todo e qualquer processo de adoecimento?
– De que forma as características de personalidade e de dinâmica emocional poderão convergir num padrão propenso ao adoecer?
Tentando ser didáctica, contudo, correndo o risco de parecer simplista e redutora na visão que tento aduzir, é imperativo que destaque a História de Vida (a par da genética, naturalmente), como o cerne da Saúde ou do Adoecimento, no sentido da mesma ser absolutamente irrepetível e singular, em cada ser humano: nas dinâmicas relacionais que se estabelecem e criam; no “berço” que se teve; no embalo; nos cuidados; nos abraços, toque, sorriso e olhares (de pai e de mãe, fundamentalmente), que cada um foi absorvendo e enraizando dentro de si; nas carências, de vária índole; nas negligências; na austeridade e hostilidade; nas palavras não ditas, nem encorajadas a serem verbalizadas; nas zangas inibidas e silenciadas, etc. De acordo com esta linhagem de ideias que apresento, e de forma a ir de encontro às respostas para as questões que acima enunciei, far-me-á sentido partilhar duas frases (magníficas, pela sapiência que encerram!) que escutei, em tempo da minha formação, enquanto estudante de Psicologia e, às quais vou voltando, vezes a perder de vista, sempre que escuto e revivo, com as pessoas, as histórias que me confiam:
“Ninguém adoece sozinho” e “A relação é o grande arquitecto do Sistema Nervoso”.
Assim – não descurando as frases visadas – e voltando à questão dos “Marcadores de Doença” ou “Factores de Organização Saudável”, importa salientar que – por exemplo (entre muitíssimos outros a que poderia aludir) – qualquer criança que cresça e se desenvolva num ambiente de privação afectiva, onde prevaleçam laivos de aridez emocional e rigor extremo, apesar de poder usufruir de um conjunto de dinâmicas estáveis (p.e. boa capacidade financeira dos pais; bom ambiente escolar, etc), apresentará uma larga propensão a tornar-se um adulto, com traços de personalidade característicos de um perfil de contenção e repressão emocionais, o que trará, do ponto de vista interno – Psico-neuro-endócrino-imunológico – uma série de intercorrências negativas, das quais o Stress Crónico (interno, silencioso e insidioso) é o ponto terminal e, simultaneamente, gatilho, para a doença. Isto, porque, nestas circunstâncias, há como que um evitar de sentir e pensar as emoções, como se o corpo (entenda-se, corpo-mente) se defendesse desses estados de activação fisiológica, não conseguindo, por isso mesmo, tecer qualquer representação mental discernível da emoção em causa (medo, vergonha, nojo, raiva, etc). De acordo com esta asserção de ideias, um ser humano que se enquadre, permanentemente, nestas condições – a inibir, de forma reiterada, as manifestações emocionais – acaba por se “insurgir” em relação a si próprio, (o vulgo “desligamento corpo-mente”), na medida em que essas respostas fisiológicas, resultantes desse contínuo estado extremo de “alerta” e activação (o dito Stress) ao tenderem a tornar-se crónicas e instituindo-se como traços constitucionais da essência da pessoa, acabam por criar, no limite, uma desregulação na actividade endócrina, com o consequente desfasamento na resposta imunitária, patenteado na maior vulnerabilidade à doença.
Por conseguinte e chamando à discussão, novamente, as premissas de que “Ninguém adoece sozinho”, a par de que “A Relação é o grande arquitecto do Sistema Nervoso”, tornar-se-á irrefutável que será a partir dos padrões relacionais criados na infância e, muitas vezes, perpetuados ao longo da vida, que vamos criando pequenos “fossos” no nosso mundo interno e na vida mental – o dito Stress Crónico – que, acentue-se, não se inscreve à margem de múltiplos sofrimentos e desamparos – perceptíveis (no exemplo exposto, da criança privada de afecto), no “engolir” de desalentos, no reprimir uma eventual sensação de revolta, face à solidão e vazio afectivos em que, decerto, essa mesma criança se sentirá, estando imersa, permanentemente, num ambiente com esses contornos.
Por tudo isto, sim, não há Adoecimento sem Stress, nem Stress sem Adoecimento!