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Quando me propus escrever este artigo para ser publicado nos meses de Verão, veio-me de imediato ao pensamento a ideia de férias, esse grande abraço materno anual que a vida nos presenteia, por ritual ou por convenção. É um abraço terno e longo em que ficamos envolvidos pelo calor de uma estação, o doce e terno Verão.
Para muitos é um tempo de paraíso e de reencontro momentâneo com a infância. De memórias doces invocadas pela frescura do mar, pelo cheiro do chapéu de palha que nos cobre a cabeça enquanto caminhamos na areia, pelo sol que aquece a cara enquanto revisitamos aquele velho caminho que nos leva à nossa praia preferida. Para os apreciadores de campo, como eu, é ainda a possibilidade de viver mais tempo junto a uma árvore. Desde logo, porque a sombra nos convida a pegar naquele livro que estava suspenso desde o ano passado. Estender a velha manta no chão e ficar a olhar os recortes das folhas e o modo como se entrelaçam, observar a luz do sol que entra nos intervalos dos ramos.
É a beleza que nos conduz a escolha dos lugares de férias. O impacto estético e emocional que cada experiência teve em nós no passado. Queremos sempre regressar lá, a esse tempo próprio em que nos sentimos resgatados do ritmo frenético do ano, a esse tempo em que a sintonia desejavelmente é de encontro com os ritmos internos e com as necessidades mais básicas de cada um. É um tempo de tranquilidade e de auto benevolência. Não mais estamos orientados pelas regras e rotinas do resto do ano, tudo experimenta uma nova forma.
Os ritmos naturais dos processos humanos envolvem, desde o início da vida, alternância entre estados de actividade intensa e estados de tranquilidade. O bebé ao entregar-se numa condição de total relaxamento a uma mamada feliz, fica posteriormente num estado de quietude e tranquilidade. Esse descanso dos estímulos do mundo é a base para a capacidade da criança e adulto sadio experimentar a criatividade. Exercer a criatividade resulta assim do encontro com um ritmo próprio, condição essencial para o prazer e para o sentimento de estar vivo.
Mergulhando na ideia de férias, como uma experiência de holding emocional que nos põe em contacto com um tempo interno, dou por mim a pôr no “caldeirão” da reflexão, conceitos da psicanálise que marcam precisamente o início da vida, como o de rêverie (Bion), de holding materno (Winnicott) ou até de beleza e impacte estético (Meltzer). Outros conceitos poderiam ser relacionados, como o de pulsão de vida por referência à obra de Freud, ou simplesmente a ideia de sonho acordado, um day dreaming que nos expande e transforma o mundo interno e que constitui uma base de recordações, uma reserva de vitalidade para o resto do ano. Podemos pensar aqui na criação de elos de ligação à vida e a tudo o que une e constrói. E porque não, numa referência à obra de Melanie Klein, ao nascimento da gratidão.
Debruçando-nos no conceito de holding e de rêverie, poderemos pensar que eles se conjugam e marcam precocemente o encontro deslumbrado do bebé com o mundo.
O holding refere-se a uma sustentação física e emocional do bebé pela mãe. Os cuidados maternos, dada a sua consistência e continuidade no tempo, protegem o bebé dos excessos pulsionais e externos, de uma invasão prolongada e excessiva do meio ambiente.
A rêverie por sua vez, refere-se mais a um trabalho de sonho materno, em que a mãe acometida por um estado emocional de encanto pelo seu bebé, envolve-se numa intensa e profunda construção subjectiva com o mesmo. Mediada pela musicalidade da sua voz, pelo seu olhar de antecipação das suas necessidades, pelo contacto táctil que proporciona um envelope psíquico de sustentação corporal e mental do bebé, pela capacidade de interpretar e dar um significado aos seus apelos. A rêverie, como sonho materno, é assim o equivalente a uma placenta fora do útero, um órgão que filtra o contacto com a realidade feia e assustadora; um véu de ilusão e devaneio que favorece o trânsito e a transformação das emoções. Em última análise, a rêverie permite a introjeção de uma relação de objecto bom – um seio bom (numa linguagem Kleiniana) – um seio pensante, que é fonte de esperança, vitalidade e fé.
Meltzer no seu texto de 1988, The apprehension of beauty, aproxima a psicanálise da estética (como forma de experiência emocional, beleza e verdade), fazendo-nos pensar na intimidade desse vínculo. Fala-nos de como o impacto inicial da beleza da mãe, no seu bebé, não se deve apenas ao exterior do corpo materno, mas especialmente ao mistério do seu interior (com os seus conteúdos desejáveis) que desperta no bebé o desejo de conhecimento da mente da mãe. Esta experiência precoce em que a mãe fornece o recipiente mental para o ajuste do bebé na exploração do mundo, é precursora do impulso para a criatividade e para o conhecimento. É ainda condição fundamental para uma experiência estética integrativa do belo e do harmonioso.
Gosto da forma como Manuel Matos, no seu livro “Adolescência – Representação e Psicanálise”, faz uma alusão ao conflito estético e ao seu lugar no processo de desenvolvimento. Ele descreve-o do seguinte modo: “se a mãe com toda a naturalidade e beleza, recebe com amor e disponibilidade o filho que gerou no seu corpo, se o seu olhar misterioso espelha a admiração pelo homem com que o fez, dá-se aquilo a que se designa o impacte estético. Criam-se elos de ligação à vida e a tudo o que une e constrói. Nasce a gratidão. Deste processo identificatório nasce o preenchimento relacional, por oposição à insatisfação, à avidez, à voracidade e à violência sob diferentes formas”. Esta alusão à formulação do conflito estético para Meltzer, leva-nos a crer que a psicopatologia pode ser considerada como um retirar-se do conflito estético, uma introjeção do desencanto e do feio, uma decepção precoce com o mundo e as coisas belas da vida.
Ao longo da vida, atualizamos a capacidade para reexperienciar a beleza do mundo, sendo essa capacidade semeada na mais precoce infância. As férias, sendo um tempo de abrandamento, sensorialidade e contemplação, abre um amplo espaço de tempo, de reencontro com o ritmo interno. O que favorece o reencontro com os processos anteriormente descritos.
Também no processo analítico e psicoterapêutico, onde se estabelece uma relação próxima entre terapeuta e paciente (estão ambos absolutamente entregues à experiência emocional característica do campo analítico/psicoterapêutico) é alcançado um estado estético (Bion, 1970/1991). A dimensão estética da mente é convocada na especificidade de cada encontro terapêutico, no trabalho do terapeuta-mãe em “sonhar” o seu paciente, na contemplação serena com que acolhe as emoções da sessão e as transforma. A mãe em estado de rêverie, um pouco como o terapeuta nas sessões, é capaz de estimular, despertar interesses e curiosidades, vitalizar, presentear o bebé (em nós) deprimido ou em isolamento. O terapeuta, parteiro de novos significados e ligações, apresenta o mundo com encanto, surpresa, mistério e prazer, viabilizando um encontro terapêutico genuíno, particular e único.
Referências:
Bollas, C. (1978). The aesthetic moment and the search for transformation. The Annual of Psychoanalysis, v. 6, p. 385-394.
Klein, Melanie (1882-1960). Inveja e Gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora
Matos, Manuel (2005). Adolescência, representação e psicanálise. Lisboa: Climepsi Editores.
Meltzer, D; Williams, M. H. (1988). The apprehension of beauty: The role of asthetic conflict in development. Londres: Clunie Press by the Roland Harris Trust Library.
Parsons, M (2007). Sobre a rêverie. Rêverie: Revista de Psicanálise.
Winnicott, D. W. (1965). The Maturational Processes and the Facilitating Environment: Studies in the Theory of Emotional Development. London: Hogart Press & The Institute of Psychoanalysis.