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Há tempos ouvi um podcast onde se alertava para o facto de que, numa era de forte expansão das redes sociais e de um número nunca antes visto de ligações virtuais, um quinto dos Millenials (os pioneiros digitais, nascidos na década de 80) se queixem, no entanto, de que não têm um único amigo. Mas têm muitos seguidores, por vezes às centenas ou mesmo aos milhares, no Facebook, Instagram e outras plataformas emergentes e interagem em permanência com várias pessoas, numa base diária.
O ecrã do telemóvel e tudo o que ele traz consigo, constitui uma espécie de segunda realidade, como tratando-se de uma barreira de vidro que está entre o Eu e o mundo exterior, e dista bastante deste último: no mundo online a nossa opinião é pedida e até mesmo glorificada, somos convidados a reagir, a opinar, a comentar todo o tipo de pessoas e situações; tudo isto numa base imediata e instantânea, sem um verdadeiro convite à reflexão, ou balanço das características globais e complexas daquela pessoa ou acontecimento que está a ser avaliado. Tudo parece satisfatoriamente simples e polarizado – ou se gosta ou não se gosta, ou se é contra ou a favor. E isto dá-nos uma sensação agradavelmente ilusória de que o mundo é simples e de que estamos sempre certos. Neste mundo banem-se os problemas, as nuances, as exceções, tudo aquilo que impõe limites ou dificuldades, incluindo a aceitação da impossibilidade de acedermos ao conhecimento e à verdade plena das coisas. Como diz o escritor Robert Musil, a verdade é traiçoeira, até porque está em constante mutação.
Claro que há muitas pessoas que usam as redes sociais com sensatez. E as redes sociais e o mundo digital geraram inúmeros contributos para o progresso da humanidade, certamente que ligaram mais pessoas que estão geograficamente distantes ou isoladas, atribuíram mais direitos aos consumidores, e são fonte de entretenimento para todas as idades. Mas até que ponto, em muitos casos, a camada de vidro não se tornou já opaca, fechando lenta e insidiosamente as pessoas no espaço que a antecede: a procura de gratificação constante, em feedbacks destinados a validar e enaltecer o próprio e as suas visões – incluindo de todos os que fazem parte da sua “tribo” – faz com que as pessoas se isolem cada vez mais. O conflito é evitado ao máximo, e quando surge dá lugar às discussões e cisões mais profundas entre pessoas, como se discordar de alguém fosse estar “contra” essa pessoa. Mas o conflito é inerente à natureza humana, quer do ponto de vista psicológico, quer social, quer mesmo em muitos processos biológicos essenciais. O conflito traz e obriga-nos a lidar com os nossos limites, mas é um processo essencial para a auto-regulação, a inerente capacidade de ver a perspetiva do outro e de refletir sobre isso, e está ainda presente em qualquer processo criativo, onde muitas vezes se transformam forças e ideias em oposição. É ainda essencial em qualquer processo de mudança ou de evolução, como na psicologia clínica.
A intimidade artificial tem, no entanto, um propósito: dar a ilusão de que alguma coisa acontece, de que algo importa na vida de todos os dias, e em última análise de que nós somos importantes. Mas a verdadeira intimidade acontece atentando no outro: em tudo aquilo que ele tem de diferente, mas também complementar connosco. Seguramente tem desafios, limita-nos, exige de nós, mas quem tem a sorte de amar e ser amado de volta, sabe que nada mais importa.