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Lembrei-me de encetar algumas linhas de reflexão, ainda que mescladas a um jeito interpelativo, no intuito de tentar transmitir grelhas de análise didática, a respeito de determinados conflitos internos e controvérsias, muitas vezes, “vividas clandestinamente”, no sentido da solidão e do silenciamento que muitos seres humanos vão fazendo e vão sentindo, em panoramas e situações muito específicos, mas, sobretudo, em jeito de padrão existencial contínuo – que, no limite, induzem uma espécie de vivência e sensação de “encarceramento interno”, ou “via sem saída”.
Com efeito, e em sentido concreto, proponho-me perscrutar algumas questões basilares que poderão integrar, de alguma forma, uma vastíssima amplitude de configurações de vida, “jeitos de ser” e, até, situações pontuais, com as quais qualquer um de nós poderá vir a confrontar-se, a determinada altura da vida, onde, em cada uma delas, se poderá depreender um paradigma e denominador comum que impera, implicitamente – o dito “Viver Estranhamente”. Nesta senda, tentando conferir uma roupagem de maior explicitude e amparando-me, por isso, numa interface com a prática clínica – não raras vezes, em contexto Psicoterapêutico, surgem questões e desabafos como “Não me sinto amado”, bem como “A minha vida não tem a minha cara”– pelo que poderemos cingir-nos a estas afirmações, de índole absolutamente impactante, para que, desde já, se compreenda que um ser humano que assuma tais verdades, mais que não seja, vive em sofrimento (o dito “Viver Estranhamente”). Em decorrência, os retratos do mundo interno que, tendencialmente, aqui subjazem, serão compagináveis com laivos de vivência de Desamparo e Desespero que, em função de múltiplas variáveis (história de vida e presença ou ausência de redes relacionais de suporte e afecto, por exemplo), poderão assumir diferentes gradações de severidade (expressa interna e externamente). Assim, como expoente máximo destes sentimentos e vivências internas (de Desamparo e Desespero), poder-se-á apontar o Suicídio ou pensamentos que a ele aludam. Não deixa de ser uma forma de viver, estranha, onde o próprio se sente “engolido” pela dor, pela angústia, pelo dito Desamparo e, sobretudo, pelo Desespero que isso acarreta. Vive-se, vai-se vivendo, ainda que com a sombra e o fantasma, sempre latente, de “Quero ir-me embora, não quero estar na vida, porque nada tenho, nada sou para alguém, não sou feliz, nem consigo sê-lo…”. De igual modo, este padrão de “encarceramento interno” onde prevalecem, de forma insidiosa, os sentimentos dilacerantes anteriormente aduzidos (de Desamparo e Desespero), poderá estar imerso noutras tantas configurações semiológicas e sintomáticas, de carácter igualmente corrosivo e que, por essa razão, carecem de preocupação e atenção – o caso da Violência Doméstica (p.e), bem como o caso do Auto-flagelo e Mutilações a que muitas pessoas recorrem, como forma de “escora” a este sofrimento interno desencadeado pelas ditas sensações, que são, tão somente, a maior antítese da vitalidade interna e do bem-estar psíquico e emocional. Em ambos os casos, o “encarceramento interno/clandestinidade” é uma variável comum, ainda que a interpretação subjacente a cada uma das situações, se possa ancorar em vectores de análise/legendagem diferentes. No caso da Violência Doméstica – tentando emergir numa análise compreensiva do perfil que poderá caracterizar, grosso modo, o mundo interno das vítimas (e não tanto dos agressores) – será legítimo indagar acerca dos motivos pelos quais, tais pessoas, se vão mantendo, paulatina e reiteradamente, nestes padrões da submissão à maldade e agressão gratuitas, perpetradas por um outro com quem se devia ter, presumivelmente, uma relação de respeito e amor.
Por conseguinte, não será despiciendo assumir que, muitas destas pessoas, em função das histórias que as “compõem”, e não desvirtuando muito a linhagem de outras tramas relacionais dos seus passados, quase que parecem viver num registo latente de “Mais vale mal acompanhado do que só”, na tentativa estóica de “fugirem” e lutarem (de um ponto vista inconsciente, claro!) ao sentimento caracterial prévio de Desamparo e Desespero. Qualquer comum mortal, a esta altura, ao ler o que escrevo, deverá estar com dificuldade em conceber o nexo destas reflexões que partilho, tal é a dimensão paradoxal que lhe é indestrinçável! E sim, de facto, não deixa ser verdade! O nosso mundo interno, o nosso Sistema Nervoso e, por inerência, o nosso Psiquismo, são hábeis na forma como criam controvérsias e “emaranhados emocionais”, como forma de sobrevivência à dor e ao sofrimento.
Redireccionando atenção ao perfil anteriormente evocado, do Auto-flagelo e Mutilações, em virtude do padrão de “emoções amordaçadas”/contenção emocional, com a contra-partida subjectiva da percepção do deflagrar do sentimento de abandono, Desamparo e Desespero (porque muito pouco se partilha com outrem, muito pouca compreensão e atenção debruçada sobre si, se percebe e se interioriza, como se se vivesse numa espécie de “solidão assistida”), de cada vez que não se esbate este silenciamento emocional, adensa-se o vazio e o sentimento de (“Ninguém consegue ver-me na minha dor, ninguém dá conta dela”), incrementando, por sua vez e desmesuradamente, o sentimento de Desespero que, em última instância, incorre na tentativa de o “anestesiar”, ainda que temporariamente, pelo incutir de uma dor e mal-trato físico, que distrai e ilude, o próprio, do Desespero mortificante que o acomete.
Ainda no âmbito de alguns dos múltiplos cenários que poderão integrar este dilema de “Viver Estranhamente”, sem grandes rasgos de vitalidade interna e, portanto, num registo de falseamento em relação a si mesmo, não queria deixar de fazer uma breve menção a duas outras grandes facetas do espectro emocional – a Vergonha e o Medo – amplamente “branqueadas” e em relação às quais, muitas pessoas, vão recorrendo a subterfúgios, para delas se defenderem, ou, de algum modo, as “camuflarem”, com o objectivo primordial de que se tornem menos coercivas e periclitantes à consciência e integridade interna. Lembrei-me do caso dos divórcios que se vão protelando, pelo Medo do julgamento de terceiros, concomitante à Vergonha que lhe poderá estar associada, bem como ao Medo subliminar do abandono e solidão, patentes na crença de não voltar a encontrar outra pessoa com quem se possa vir a sintonizar, etc. A par disso, a questão da expressão e vivência plena da sexualidade, em que, não tão raramente, surge como uma espécie de “lado intocável” ou “face oculta”, que se vai mantendo em absoluta repressão, especialmente ao abrigo de uma união hetero-sexual, quando a essência e a vontade genuína é a de vivenciar a verdade, condizente com o que se quer e, portanto, absolutamente fiel ao que se sente – designadamente, quando a genuinidade é a de estar numa relação, sem Medo, nem Vergonha, com alguém do mesmo Género.
À guisa de conclusão, e pelo elencar das ideias expostas, restar-me-á referir que o contexto Psicoterapêutico poderá ser o caminho de reparação destes e de outros tantos padrões vividos, na grande maioria das vezes, como “vias sem retorno” ou de “encarceramento interno”, encriptados e patenteados na afirmação de “A minha vida não tem a minha cara” – que é como quem diz – “Vivo de forma estranha”.