Reflexos de Plenitude e Ruína – uma análise a “Campo de Trigo com Corvos”

Em 1890, Van Gogh pintou “Campo de Trigo com Corvos” (Wheatfield with Crows). O quadro enche-se de cores vibrantes, pinceladas de todos os tamanhos e feitios, movimentos rápidos e simultaneamente calmos, elementos naturais pertencentes a um campo de trigo acompanhado pela vida e pela ausência que o compõe.

O nosso olhar dirige-se magneticamente para o trigo dourado que parece balançar alvoraçadamente pelo sopro do vento ou por algo que surge repentinamente, fazendo com que a planta de caule fino e oco se agite frenética e momentaneamente. Fico com a sensação de que após o desvanecer desta presença o campo permanecerá calmo como se a quietude da cena nunca tivesse sido perturbada por forças maiores. A vida retomará o seu rumo.

Parecem existir três caminhos: o central, que nos conduz ao meio do campo de trigo em direção ao horizonte, e os laterais, o da esquerda parece levar-nos a um prado e o da direita parece dar continuidade à parte exterior do campo. O caminho da esquerda parece ser composto por vários tipos de verdes, podendo simbolizar a presença de relva, arbustos ou plantas que nos guiam para um prado rico em vegetação, rico em vida. O caminho central parece ter restos deste prado, como se simbolizasse o trajeto percorrido por um trator que leva preso nas rodas restos de existência até à linha do horizonte. No caminho da direita conseguimos observar ínfimos resíduos do dito prado, como se fosse o último destino percorrido por quem foi visitar as pastagens tenras e viçosas.

O céu é composto por vários tons de azul, mais claro em dois centros e escurece para um azul-noite conforme a claridade dispersa. Tal como se nos estivesse a acautelar a vinda de um presságio. A presença de corvos a voar para longe do campo capta a atenção. Estes animais são reconhecidos pela sua inteligência, comunicação e comportamentos sociais complexos. Memorizam rostos, recordando-se de quem foi bom ou mau para eles e são leais para com quem os ajudou, voltando frequentemente com oferendas. Ajudam a limpar o ambiente em que se encontram através da ingestão de carcaças de animais, restos de alimentos, frutos, sementes, insetos, asseando o local e interrompendo a propagação de doença. Os corvos deste quadro fogem da cena.

Sentimos a vida a desvanecer e, num ápice, … desaparece.

Não há mais vento ou corvos que deem ritmo ao trigo semeado. O tempo para. O silêncio é ensurdecedor. O céu atafulha-se de preto e a vista desaparece. Tudo o que é construído e imaginado acaba com a partida dos corvos. Simbolizando a proteção e a vigilância, os corvos protetores não são mais necessários, pois já não há alguém para proteger.

Diz-se que este foi o último quadro pintado por Vincent Van Gogh. No dia 27 de julho de 1890, deu um tiro sobre si mesmo fazendo pontaria para o peito. Passados dois dias faleceu.

Referência:

Van Gogh Museum. (n.d.). Vincent van Gogh’s deathhttps://www.vangoghmuseum.nl/en/art-and-stories/stories/all-stories/vincents-death

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