O Perdão – Notas do filme “Jurado Nº 2”

Há algumas semanas vi o “Jurado Nº 2”, o mais recente filme do realizador Clint Eastwood, que julgo que passou relativamente despercebido pelo público (cá não chegou às salas de cinema e ficou-se pelo streaming). E dou por mim a lembrar-me dele várias vezes, no contexto das minhas consultas e não só. O filme toca os temas da justiça e do perdão, de resto habituais nas produções do realizador.

A história começa com a convocatória de Kemp, o personagem principal, para integrar um júri civil que deve deliberar sobre a culpa ou inocência de um jovem, suspeito de atropelar mortalmente a namorada. Várias pessoas testemunham a discussão acesa do casal na noite do crime, sendo o arguido o único suspeito, que no entanto se declara sempre inocente. Mas para a maioria dos jurados ele é culpado e Kemp integra uma pequena facção dentro do grupo disposta a admitir a sua inocência.

Mas eis que a narrativa se transforma, mediante a descoberta de novos indícios, levando o próprio Kemp a suspeitar que pode ser ele o culpado do crime. Começa, por exemplo, a recordar que naquela noite se dirigiu, sozinho, ao bar onde se deu a discussão do casal, para reviver um trauma pessoal. No regresso a casa, uma intempérie fê-lo provocar um violento atropelamento, do que acreditava ser um veado.

A conversão a que assistimos de Kemp, que passa dramaticamente do papel de avaliador, julgador, que deve extrair conclusões do tipo causa-efeito numa posição de superioridade moral (que ele próprio rejeita mas que é assumida por outros jurados) para o de suspeito frágil e transtornado, ignorante quanto ao seu possível papel num crime grave de que não tem conhecimento, coloca o espectador frente-a-frente com um mecanismo particular que opera dentro de nós, e que deve ser pensado: como é que passamos do papel de julgadores, mais ou menos confortáveis, a lançar críticas sobre os erros dos outros, para a postura bastante mais benévola em favor do nosso próprio perdão. Ou seja, que mecanismo em nós é este que explica que alguém se ache mais merecedor do perdão do que os outros. Noutras situações, o julgamento que fazemos acerca de nós próprios é também ele excessivamente pesado e injusto em relação às circunstâncias.

Usualmente, com Eastwood podemos ser desferidos perante a dor e a injustiça, mas tudo se passa numa atmosfera gentil e ternurenta, de esperança. Este não é o caso em “Jurado Nº 2”. O desespero crescente de Kemp sustenta a angústia criada por dúvidas crescentes sobre o que é, afinal, a justiça, até ao final do filme. E que belo “fim de cena” para Eastwood, arrebatar-nos a consciência de forma dura e pouco gentil, neste que será possivelmente o seu último trabalho como cineasta. Um murro no estômago muito necessário, que atiça a consciência e de forma produtiva faz questionar tudo (incluindo o nosso sistema judicial). Em tempos onde predomina o julgamento alheio instantâneo, e onde em simultâneo as injustiças humanas são coloridas pela indiferença, fica este convite à reflexão a partir do olhar atento de Eastwood.

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