Entre o brilho e o abismo: perfeccionismo

 “Sempre que me falas de perfeição penso no rumor das coisas imperfeitas: a rosa que cede à asa do vento, o corpo que se oferece ao amor sem cálculo” (Eugénio de Andrade)

Uma espécie de dívida que nunca se paga. Uma fatura em aberto com o mundo e connosco mesmos.

Na psicologia, fala-se do perfeccionismo como a voz severa do Superego, como o eco das primeiras exigências que ouvimos ainda em crianças: “Sê melhor! Não erres! Não chores! Não falhes!” Freud chamou-lhe Ideal do Eu, Karen Horney disse que era a “tirania dos deveres”. Palavras diferentes para a mesma ferida: a impossibilidade de sermos humanos sem pedir desculpa.

A busca pela perfeição, muitas vezes admirada socialmente, como sinal de empenho e de rigor, carrega no seu âmago uma inquietação profunda. Do ponto de vista psicodinâmico, este anseio incessante por “ser perfeito” revela muito mais do que um traço de personalidade: é uma expressão do inconsciente, um eco das primeiras relações afetivas, uma tentativa de reparar feridas emocionais antigas. Por trás do brilho de uma fachada impecável, frequentemente esconde-se um sofrimento silencioso.

A criança, ao longo do seu desenvolvimento internaliza expectativas, críticas e normas. Quando estas vozes internas se tornam inflexíveis, criam um tribunal psíquico implacável, que julga cada acção, cada falha, cada desejo. Assim, a busca pela perfeição pode ser entendida como uma tentativa desesperada de obter aprovação, amor ou segurança. O indivíduo vive aprisionado entre um “eu ideal” e a sensação constante de insuficiência.

Cada vez mais as redes sociais nos mostram vidas lisas, sem arestas. Fotografias editadas até à última sombra. Corpos desenhados em filtros. Famílias sempre sorridentes. Profissionais sempre de sucesso. E o que é humano — a tristeza, a dúvida, o cansaço, a falha — é escondido, deixado nos cantos onde ninguém vai. Olhamos para a nossa própria vida e sentimos que nunca chega, que nunca é suficiente.

O perfeccionismo é uma casa onde nunca se chega a casa.
É construir, pedra sobre pedra, uma morada que parece sempre incompleta, onde a parede tem de ser mais lisa, onde a janela nunca é suficientemente clara, onde o teto ameaça ruir porque a perfeição não admite descanso.

Albert Ellis diz-nos que a “exigência da perfeição é uma das crenças mais autodestrutivas: não somos deuses, somos humanos”. Somos humanos, mas nessa humanidade nos corrompemos quando vivemos a crença única de que o amor e aceitação dependem de um desempenho impecável.

O perfeccionista vive um conflito intrapsíquico permanente. Oscila entre a ambição grandiosa de superar limites humanos e o medo paralisante de falhar. Surge a ansiedade crónica, uma sensação de estar sempre aquém, uma tensão que se infiltra em todas as esferas de vida: no trabalho, nas relações, no corpo. Em terapia é comum ouvir frases como “sinto que nunca faço o bastante, mesmo quando todos dizem que sou excelente” ou “Não consigo descansar, pois há sempre algo para melhorar”.

No trabalho, a pressão veste-se de elogio: “excelência”, “alta performance”, “profissional exemplar”. Mas por trás da palavra bonita esconde-se a exaustão, o sono em falta, a ansiedade que não deixa respirar.   No entanto, a verdadeira criatividade (como nos diz Winnicott) “só pode emergir num ambiente suficientemente bom, onde o indivíduo se sinta seguro para falhar”. Se nunca se tiver experienciado esse “ambiente suficientemente bom” vive-se em rigidez.

De tanta busca pela perfeição encontramos muita dificuldade, no trabalho e nas relações, em delegar tarefas e responsabilidades, para ilusoriamente controlarmos tudo e diminuirmos (julgamos nós) as possibilidades de erro e falha. Nos relacionamentos amorosos tememos mostrar vulnerabilidade e raramente partilhamos os nossos medos. Sentimo-nos presos numa armadura de competência. Questionamo-nos acerca do nosso lugar no outro. Perguntou-me em tempos uma paciente: “E se eu não sou perfeita…ainda alguém vai gostar de mim?!”.

É o Ideal do Eu inantigível : ser perfeito para merecer amor. Essa estrutura faz com que qualquer falha desperte sentimentos intensos de culpa e vergonha, pois representa uma ameaça ao vínculo afetivo primitivo.

Temer ser visto como imperfeito é também sentir-se indigno de amor. E isso está ligado a uma angústia de castração simbólica: falhar significa perder valor, poder e reconhecimento. Assim, o erro é vivido não como aprendizagem mas como ameaça à sua identidade.

No perfeccionismo encontramos a raiz invisível de muitas dores: a ansiedade que aperta o peito, a depressão que sussurra “não vales nada”, o burnout que incendeia até ao vazio, os distúrbios alimentares que procuram um corpo impossível, o TOC que arruma gavetas para tentar arrumar a alma. Em última análise, o perfeccionismo é uma defesa contra sentimentos profundos de inadequação, culpa, medo de perda ou rejeição.

Em busca dessa perfeição inalcançável, o indivíduo vive sob um “tribunal interno” constante. Pequenos erros geram ataques de autodepreciação. O perfeccionista antecipa o fracasso antes mesmo de agir, com medo da humilhação. Desta forma o Eu investe energia massiva em manter uma “máscara” impecável e a compulsão do controle dá a sensação de segurança frente ao caos interno.

No fundo, a identidade passa a estar “atrelada” ao desempenho e o indivíduo sente que “é” apenas aquilo que realiza. O “ser” desaparece sob o “fazer”, e isso cria vazio e alienação de si mesmo.

Mas o perfeccionismo tem também uma face luminosa: a dedicação, o cuidado, o detalhe. É ele que faz um médico estudar até de madrugada, que leva um escritor a reescrever uma frase vezes sem conta, que inspira um músico a repetir a mesma nota até que soe verdadeira. O problema não está em querer melhorar. O problema está em nunca aceitar ser “suficientemente bom”.

A perfeição não é o que sustenta a vida, é a suficiência. O bastante. O real. Como nos diz Lacan:  aceitar a falta é um passo para a liberdade psíquica.

O perfeccionismo, afinal, não mais é do que o medo de não ser amado.
E o caminho da cura não está em ser perfeito, mas em descobrir que merecemos amor mesmo quando falhamos. Sobretudo quando falhamos.

Na psicoterapia aprende-se que o erro não é ruína, que a vulnerabilidade pode ser acolhida e que o valor do ser não se mede em listas, traços ou metas. Podemos tirar a armadura, peça por peça. Chorar como a criança que nunca pôde falhar. Dentro da terapia o impossível torna-se possível: o ideal inalcançável encontra espaço para descansar, o superego cessa a sua tirania silenciosa e o coração aprende que já é suficiente. Gradualmente aprende-se a integrar imperfeições e a criar uma relação mais compassiva consigo mesmo. Assim se descobre que a perfeição não é um destino, mas uma prisão. E a liberdade começa onde ela ousa ver-se humana.

A busca pela perfeição é   uma narrativa psíquica que fala de feridas, desejos e histórias não contadas. Ao trazer essas histórias à luz o indivíduo pode libertar-se do jugo do superego tirânico e reencontrar um equilíbrio interno. Paradoxalmente, é ao aceitar a imperfeição que se abre espaço para a verdadeira autenticidade – e talvez aí resida a forma mais genuína de perfeição humana.

 

“A perfeição é uma miragem; a vida real é feita de imperfeições, e é nelas que nos tornamos humanos” – Carl Gustav Jung

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