A Ambiguidade do Silêncio

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A humanidade, dos dias de hoje, ao cercar-se de uma imensidão de demandas, de ruídos de fundo, de azáfamas que nos interpelam e atropelam, de agendas dotadas de uma imensidão de imperativos, em relação aos quais, muitos de nós, se vai acomodando, com exímia subserviência, quase que em “piloto-automático”, acaba por revelar-se como diametralmente oposta ao modo de “viver para sentir”, “sentir para viver”, “sentir e pensar” e “sentir, pensar e viver”, compaginável com um estilo de vida e padrão de funcionamento, tendencialmente, saudáveis. Com efeito, para que exista fluidez entre estas duas grandes dimensões da vida humana – Sentir e Pensar – é imprescindível a existência, impreterível, ainda que não exclusiva, de um “tempo, sem lugar marcado” – o Silêncio. Será de acordo com esta acepção de ideias que o Silêncio se institui como uma espécie de “esteio em dias de tempestade”, através da sua imensa capacidade regeneradora, organizadora e, até, cicatrizante, no sentido de permear o encontro da pessoa consigo própria – num espaço de confluência, onde se encontrem e compatibilizem emoções, sentimentos e capacidade de os ir pensando – após um dia extenuante de trabalho, por exemplo, ou após a mais acesa discussão, atendendo a que é viabilizado o dito “tempo, sem lugar marcado” para que se organizem pensamentos, se medite e se “pense com os botões” acerca de conflitos internos, numa tentativa de que se perceba a sua génese ou razão de ser e, por conseguinte, se consigam encetar atitudes e comportamentos de redenção e reparação.


Todavia, este “tempo, sem lugar marcado” a que me refiro, apesar de assumir esta faceta quase que de “bem de primeira necessidade” – por se revelar como um dos mediadores na manutenção do equilíbrio mental, ao abrir vias para o alinhamento entre sentir as emoções e pensar os sentimentos – ainda se reveste de muitas particularidades (que seriam dispensáveis), em virtude de ser profundamente invasivo, constrangedor e, inclusivamente, ameaçador à capacidade de tolerância que algumas pessoas apresentam, quando com o Silêncio se vêem a braços. Em concomitância, neste domínio, é com absoluta pertinência que emergem constatações do tipo “nem sempre, nem nunca”, atendendo a que o Silêncio é preciosíssimo, em determinadas ocasiões, conforme já mencionado, sendo que, contudo, um Silêncio que perpassa, de forma sistematizada, no tempo e no espaço, acaba por se afigurar profundamente lesivo. Será a respeito desta outra faceta que integra a completude do conceito “Silêncio” que importa que se detenha especial enfoque, não perdendo de vista que “tudo o que é em excesso, faz mal”. Este excesso, a que é feita menção, refere-se ao Silêncio reiterado, pela imposição da solidão (em sentido estrito), pela ausência de relações vivificantes (internalizada, transversalmente, ao longo da história de vida), bem como pela “solidão assistida”, quando imperam sensações de vazio, abandono e desamparo, ainda que em presença de outrem, inclusive relações significativas e de referência. Assim, há aqui uma duplicidade e reciprocidade de sentidos inerentes ao Silêncio, nesta esteira de faceta negativa que lhe é intrínseca – o Silêncio, enquanto fonte de mal-estar e angústia (aquele que não é bem tolerado e, por essa razão, instigador de assombro e constrangimento), mesmo naquelas pessoas que se intitulam “de bem com a vida” ou “bem resolvidas”, assim como aquele Silêncio que deriva da ausência de “ter com quem falar”; de ter quem ajude a metabolizar e legendar “estados de alma”; de ter quem seja capaz de propiciar e acolher desabafos; de ter quem esteja apto, de forma sintónica, espontânea e genuína, para os abraços e o colo, na hora certa; de ter quem profira as palavras certas, capazes de traduzir pensamentos desarrumados, estados emocionais e sentimentos conflitantes, etc.

É, sobretudo, quando este padrão vivencial de solidão relacional e afectiva se vai instaurando, paulatinamente, que parece haver um desencontro da pessoa consigo própria, sem que haja espaço para o dito “Silêncio bom”, de redenção, indispensável a que se pense, se sinta e se vivencie a emocionalidade de forma, o menos desfasada possível, com a realidade. A este jeito, numa espécie de luta inveterada entre o que se sente e o que se faz e pensa, a pessoa vive como se houvesse um “branqueamento da subjectividade”, uma contenção emocional que, mais não é, do que “varrer para debaixo do tapete”, fundamentalmente, tudo aquilo que, de menos positivo, resulta da “espuma dos dias” – o tão afamado “fazer por não pensar” erguido, somente, com a função substantiva de “anestesiar” a dor de sentir as emoções e o subjacente confronto com a realidade interna. Por conseguinte, torna-se inequívoco que é acerca deste “Silêncio Emocional” que a humanidade (onde se inclui a comunidade científica), deverá ancorar alguma atenção, preocupação e inclusão em leituras clínicas, compreensivas e de cariz profiláctico, tomando em linha de conta que é um dos principais gatilhos para o adoecimento global (psíquico e físico), já que promove inúmeros desequilíbrios entre vários sistemas psicofisiológicos.

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