O militante pela verdade: uma “criança que perdeu o caminho de volta para casa”

Cada vez mais, enquanto psicólogos, nos deparamos com a existência de défices internos ligados ao amor próprio e à noção de identidade. Estas fragilidades trazem sofrimento ao próprio, que com inseguranças profundas mantém o seu Eu a salvo, o  mais possível, de qualquer falha ou crítica interna ou externa. Inevitavelmente, há um sentimento profundo de vazio. Este Ocidente “comodista, gordo e profundamente deprimido” nas palavras do jornalista Joel Neto, sobrevive através de modas, tribos e “etiquetas”, mais ou menos temporárias ou arbitrárias, mas que conferem um sentimento de valor, identidade e de pertença “mínimo”.

Mas estas etiquetas identitárias são voláteis e superficiais, podendo  funcionar como refúgios temporários que bloqueiam o pensamento e a reflexão. Neste sentido, fazem lembrar o conceito de “claustro” (Meltzer, 1979), uma zona psíquica isolada e que domina as outras, de caráter ditatorial e onde impera a violência e o medo. Segundo o autor, este espaço mental origina-se em eventos traumáticos da infância, descrevendo benevolamente as “crianças que perderam o caminho de volta para casa”. O prisioneiro desse compartimento ou se conforma, ou ingressa como o seu grande líder, que entrega a sua vida aos imperativos da violência. Bollas  (1993) refere  “o estado fascista da mente” como um espaço análogo, onde se gera uma identificação positiva à violência para encher o enorme  vazio do seu núcleo. A violência tem o papel de “higienizar” este núcleo da influência de qualquer benevolência, compreensão ou diálogo entre as partes oponentes ou divergentes, para conferir o poder absoluto ao “líder” mau e absoluto.

Estes fenómenos podem abrir caminho a cultos grupais e sociais assentes na violência. Autoridades identificam o recrutamento oportunista de jovens pela extrema-direita, por parte de influencers ou de pessoas que se intitulam de jornalistas mas cujo papel único é de promover o ódio. Mas isso não impede que estes jovens se sintam cada vez mais sozinhos, de acordo com vários estudos.

O filósofo Lee McIntyre (2023) defende que as próprias ações de desinformação a que assistimos é agressiva, porquanto visa destruir o conceito de verdade plausível para criar “neo verdades” arbitrárias. E na era da  “pós-verdade”, aqueles que não votam, não veem notícias e “não acreditam em nada” são um perigo.  

A nossa mente funciona como um parlamento, composto por partes ligadas ao amor e à violência. É importante que as várias forças dialoguem, já que o instinto de violência contém também em si o instinto do amor. Em psicoterapia, o reconhecimento de que uma parte totalitária e violenta pode paralisar o paciente e a terapia permite a sua neutralização e o amplo desenvolvimento do pensamento. A verdadeira consciência de Si abre, por isso, caminho à complexidade, à tolerância para com o erro e a dúvida, e ao prazer nas coisas, relegando a procura por verdades absolutas.

 

 

FONTES

Bollas, C. (1993). The fascist state of mind. Em Being a character: psychoanalysis and self (p.193-217). Routledge.

McIntyre, L. (2023). On Disinformation. How to fight for truth and protect democracy. The Mit Press.

Meltzer, D. (1979). Estados sexuais da mente. Imago.

Compartilhe:

Pode também ler:

Daniela de Carvalho

Saudade

Em época de férias, parece estranho falar em saudade, tema característico da cultura portuguesa, manifestamente expressado pelo nosso Fado. No entanto, mesmo nas férias, parece ser um sentimento sempre presente; seja a

Ler Mais »