Vai ser autónomo e não me chateies!

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Vai ser autónomo e não me chateies! Ou, uma indignação sobre o futuro da autonomia instantânea

Quantas vezes desejei que os meus filhos fossem à casa de banho sozinhos, durante o dia ou a noite. Quantas vezes me perguntei qual o mistério, aparentemente exclusivo dos pais, em barrar manteiga no pão? Como é que o óbvio cansaço se transforma em energia aparentemente inesgotável quando ele chega à cama? O que faço eu com a não cooperação em preparar a mochila para as atividades do dia seguinte?

Quantas vezes estendi a todos os átomos à minha volta o desejo profundo que os meus filhos se tornem autónomos?

Até que o desejo e o que sonho para eles no futuro se transformou em necessidade e a sua aplicação irrevogável. Não existe alternativa. Eles têm de compreender. Tem de ser. Se não conseguirem, no limite, terão simplesmente de obedecer.

Não existe alternativa porque eu não tenho alternativa. Ou porque a alternativa supera os meus limites. O meu tempo. A minha disposição e a minha disponibilidade.

Porque desejo que os meus filhos sejam autónomos? Para que possa respirar ou voltar a ser pessoa? Para os preparar para o futuro? Para estar preparada para comparações e escrutínios sobre o meu sucesso parental? Para ser um bom exemplo?

A verdade é que as minhas exigências pela sua autonomia produzem resultados estrondosos! Tal Farinha Amparo, ou Milupa Multivitamínico, resolvo um sem número de complicados problemas através de um simples processo: pegar numa grande tigela de status quo (e institucionalismo, já agora), deitar-lhe uma boa quantidade de atividades, trabalhos de casa e ocupações (quentes ou não), juntar-lhes o preparado de potencial humano em forma de criança, e misturar bem e rapidamente, sem pensar em grande coisa para além das instruções, já que o resultado poderia ficar aquém do anunciado no pacote.

Este tipo de alimentação não vem, bem sabemos, sem alguns danos colaterais, mas para quê questionarmos um quotidiano já tão pesado? Há alguém que, por favor, consiga valorizar todo o meu esforço como mãe, profissional, amiga, esposa, protetora do ambiente, filha,…? Como poderei eu manter todos estes papéis e não deixar cair bola nenhuma? Ninguém percebe que mereço o desconto e fazer alguns atalhos? Afinal, estou exausta, e amanhã a carga não diminuirá. Tenho esse direito!

Mas a que custo…?

…rapidamente a minha linha de pensamento, a dificuldade da questão, é salva por uma racionalidade superior: Seja como for, nunca poderei permitir uma relação de co-dependência com eles… Dormirem na minha cama? Dar-lhes comida à boca?

Imediatamente surgem as estoicas referências da realidade externa, com as suas curvas de crescimento normal, e os seus guias de parentalidade (ironicamente) positiva: Estás louca!!, – gritam-me, num bichanar contido. Assim não terei mão neles. Nunca se conseguirão desenvencilhar. Estou a condená-los à infantilidade eterna.

Durante aqueles 3 ou 5 minutos por dia em que encontro o silêncio e o espaço para respirar, a tranquilidade leva-me para dentro e encontro-me, surpreendida, comigo. Não com o que eu esperava ver, ou imaginava ter, então, tempo para elaborar (estratégias para lidar com a resistência das crianças, justificações pseudo-científicas e pedagógicas para a minha rigidez,…), mas com o rasto da minha história. O caminho que me trouxe até este papel de adulta, mãe, trabalhadora, representante de uma vida que se quer de sucesso. Um tipo de sucesso muito específico.

Relembro-me dos jovens em consulta, asfixiados pela pilha de tarefas e compromissos pelos quais precisam de passar para chegar ao que realmente querem: a proximidade afetiva com os pais.

Então a pergunta reincide uma e outra vez, como que exigindo uma resposta que é mais dura de encontrar do que desejo. Pergunto-me: estarei a ser honesta no objecto da minha preocupação? Será por eles, ou estará mais em causa a minha própria autonomia emocional? Consigo tolerar ser diferente, dos meus pais, dos meus vizinhos, dos meus ídolos? Ou terá também a minha autonomia emocional ficado presa, bem lá atrás, quando me convidaram (ao empurrão) a desenvolver uma autonomia comportamental e cognitiva prematura?

Ou seja, conseguiremos nós desenvolver uma verdadeira e coesa autonomia (aquela que, passe a redundância, se vale a si mesma), pela mão da obrigatoriedade em desvincularmo-nos?

Para alcançar a autonomia, sei que é preciso desenvolver competências. No entanto deparo-me com a incongruência de desejar a sua autonomia através da pressão parental, externa a si, e de que saiba delegar em mim a decisão sobre o que realmente precisam. Na escola que frequentam, as atividades extracurriculares, na forma como se relacionam, o que comem e até no que fazem com o seu espaço e tempo livre. Tudo é determinante para não deixar descarrilar a carruagem. Invisto, assim, tudo o que tenho no aprimorar das suas competências em fazer exatamente como é esperado de si. Percebo que tenho, tantas vezes, errado na palavra. Debatendo-me para não o assumir, deparo-me, não com o desejo de que sejam autónomos, mas sim, autómatos.

Conseguirei, pela branda autoridade parental estimular, o crescimento de algo que só o é, por definição, quando movido a partir de dentro? Estarei a treinar filhos para ir ao penico e superarem o desamparo dos confrontos conflituosos entre pares às custas de uma enurese emocional crónica?

Estarei a impor uma autonomia forçada às custas de uma saudável identidade autónoma? 

A viver entre realidades – as da minha infância, da cultura predominante, da sociedade onde trabalho e me movo, das necessidades dos meus filhos e, finalmente, das minhas – estou eu, não podendo virar costas a nenhuma e tentando não me deixar levar pela idealização de que posso viver consoante uma só. O lugar que encontro é trabalhoso, tantas vezes desconfortável, mas tem, mesmo lá ao lado o prazer e a satisfação, sempre que me dou espaço para lhes tocar. Não é um lugar fixo, nem me posso congratular por ter encontrado a resposta. É um lugar em movimento, que se altera a cada passo que dou e que remete para a humildade o pensamento arrogante de saber “a resposta”. Não a sei. E a única forma suficientemente sã de ir concluindo é, como me recordava um amigo, tal corda de alaúde, não estar nunca demasiado tensa ou demasiado solta, para permitir a vibração afinada e ir tocando uma melodia harmónica entre todas as realidades que vivem em mim.

Joana Correia,
Fevereiro, 2023

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