O conflito no corpo: as manifestações psicossomáticas

Joana Proença Becker

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Quer se trate de sua expressão física ou psíquica, é a dor que leva o paciente a procurar ajuda” (McDougall, 1991).

   Não é raro pessoas que chegam aos nossos consultórios com queixas de sintomas físicos, por vezes encaminhadas para psicoterapia após percorrerem especialistas de diferentes áreas da medicina. Algumas logo reconhecem e descrevem acontecimentos e sentimentos que podem estar relacionados ao sofrimento (passado para o corpo), outras são relutantes em aceitar que algo psíquico pode afetar o físico. Entretanto, é preciso reconhecer que somos todos psicossomáticos.

   A palavra psicossomática se refere à influência da parte psíquica na parte física do organismo. Já as doenças psicossomáticas surgem como resultado de uma sobrecarga afetiva ou acontecimento traumático, como uma tentativa de resolução do conflito. Os sintomas surgem a partir do esforço do aparelho psíquico para lidar com a ansiedade, com a incapacidade de qualificar e lidar com as emoções.

   Os estudos sobre a relação entre emoções e doenças foram impulsionados pela psicanálise e a busca por compreender os fenómenos histéricos. No século XX, a histeria foi considerada como a expressão de conflitos emocionais por meio de sintomas físicos. Alguns autores apontaram a histeria como consequente de falhas na mobilização de recursos internos durante importantes fases do desenvolvimento, outros a entenderam como um modo defensivo usado por todas as personalidades, da normal até a mais patológica. Hoje em dia, não falamos mais em sintomas histéricos. Considerada estigmatizante, a palavra histeria passou a ser evitada e foi excluída dos manuais diagnósticos (DSM e ICD). Entretanto, a relação entre mente e corpo, muito discutida e desenvolvida pela psicanálise, é hoje provada pela medicina psicossomática.

   Apesar de não usar a palavra ‘psicossomática’, algumas obras de Freud remetem a tal conceito. Algumas décadas após estudar os fenómenos histéricos, Freud (1926) apresentou o conceito de ansiedade automática (ou angústia automática) como a consequência da incapacidade de lidar com uma situação traumática, quando se vive uma experiência de desamparo. A ansiedade automática se manifesta como um viver intensamente (trabalhar horas sem descanso, praticar atividades físicas extenuantes, se entregar a compulsões sexuais, etc.) com o objetivo de atenuar o sentimento de vazio.  A escola argentina (Maldavsky, 1993) coloca em destaque o sentimento de vazio, considerado o principal responsável pelas chamadas psicopatologias contemporâneas (doenças psicossomáticas, transtornos alimentares, adições, traumatofilias). A somatização seria, sob essa perspetiva, a consequência do sentimento de vazio, da sensação de incapacidade, de desamparo. 
   O conceito de somatização é o resultado do interesse da medicina psicossomática pela experiência subjetiva e expressão pública dos sintomas.  A somatização pode ser compreendida como uma comunicação não adaptativa do mal-estar. Quartilho (2016) fala no processo de somatização como “uma versão moderna dos impulsos inconscientes proibidos”, afirmando que seriam “os sintomas físicos a protagonizarem uma função psicológica defensiva”. Ou seja, seriam as representações afetivas a se convergirem em fenómenos somáticos.

   Concordando com esse ponto de vista, a escola francesa aponta o trauma como o desencadeante de doenças psicossomáticas. Segundo Pierre Marty (1993), “esta explosão no corpo, que não é uma comunicação (neurótica) nem uma restituição (psicótica), tem uma função de ato, de descarga, que provoca um curto-circuito no trabalho psíquico”. Complementando essa ideia, temos o conceito de alexitimia (oriundo de pesquisas psicanalíticas) como uma explicação para o processo de somatização: resultado da incapacidade de nomear estados afetivos ou descrever a vida emocional.

   Se os sintomas surgem da incapacidade de qualificar, de nomear estados afetivos e/ou acontecimentos traumáticos, a psicoterapia pode se apresentar como uma ponte entre a doença e a saúde. Na psicoterapia psicanalítica, também chamada de psicoterapia dinâmica, o paciente verbaliza seus pensamentos e sentimentos, ao invés de converter em ação ou em simples descarga emocional. A principal meta do tratamento é o desenvolvimento de uma função auto observadora, que permita ao paciente ter uma atitude mais cuidadosa com relação a si mesmo e seu corpo. O terapeuta busca captar qualquer indício de afeto vindo do paciente, muitas vezes percetível através de respostas orgânicas (como enrubescimento cutâneo e tensão postural), ajudando-o a reconhecer e nomear seus estados afetivos. O resultado esperado é propiciar ao paciente uma maior compreensão e domínio do seu mundo interno. É responder ao “grito desesperado de um corpo abandonado que apela por inscrição psíquica” (Costa, 2015, p. 105).

Costa, Gley (2015), Infância Interrompida (Caso Lara). In. Costa e col. (Org.). Clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. Porto Alegre: Artmed. p. 104-112. 

Freud, Sigmund (1976), Inibições ansiedade e sintomas. In. Obras Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago. Tradução por J. Salomão. [original 1926].

Maldavsky, David (1993), Processos e estruturas vinculares: mecanismos, erogeneidade e lógica. Porto Alegre: Artmed.

Marty, Pierre (1993), A psicossomática do adulto. Porto Alegre: Artes Médicas. 

McDougall, Joyce (1991), A dor psíquica e o psicossoma. In. Em defesa de uma certa anormalidade. Porto Alegre: Artes Médicas. p. 152-166.

Quartilho, Manuel João R. (2016), O Processo de Somatização: conceitos, avaliação e tratamento. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

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