Encanto – Uma Ode às Relações

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“We need never be hopeless because
we can never be irreparably broken.”

John Green, Looking for Alaska

Em 2021, a Disney arriscou fazer um filme acerca da dinâmica familiar e de como um trauma pode afetar toda uma família durante gerações. Trata-se de um filme inspirado no realismo mágico de Gabriel Gárcia Márquez, bem como no de Isabel Allende, dois escritores sul-americanos, com o contributo de Lin-Manuel Miranda, compositor e ator de ascendência sul-americana. Não é de espantar que Encanto seja, assim, uma localidade, fantasiosa claro, nas montanhas da Colômbia.

A família Madrigal, com os seus 12 membros ao longo de 3 gerações e a sua Casita mágica, é-nos apresentada numa história que nos deixa de coração nas mãos e nos mostra como um trauma pode ter efeito em todos os seus membros, geração após geração. Numa entrevista, dizia a correalizadora que esta Casita representa o cão da família, com diferentes formas de se relacionar com cada membro Madrigal, detalhe imaginado desde os primórdios do filme, e que os realizadores se haviam inspirado nas suas próprias famílias, encontrando arquétipos comuns a qualquer um de nós que transportaram para o filme: a ovelha negra, a criança de ouro, a filha responsável, a mãe que tudo cura com comida, etc. Um filme verdadeiramente inspirado na família e nas dinâmicas que podem existir dentro dela.

Analisando, apenas, a avó, Alma Madrigal, podemos ver uma mulher, já no avançado da sua idade, que carrega as feridas mal saradas da jovem mulher que outrora fora. Antes de ser avó, foi mãe, foi mulher, foi namorada, foi uma jovem apaixonada e com o coração cheio de amor para distribuir pelo seu amor Pedro Madrigal e pelos seus trigémeos Pepa, Julieta e Bruno. Foi uma jovem mulher, jovem mãe, a quem se viu retirado o futuro e a esperança num mundo bom e seguro. Não é de espantar que Encanto se tenha criado, num milagre oferecido pela vela que levava aquando da sua fuga para algo melhor, com uma enorme montanha à volta, isolando este pequeno paraíso do resto do mundo, um mundo de sofrimento e perigoso, protegendo a família Madrigal e todos os que haviam fugido com Alma e Pedro da sua terra natal.

Podemos pensar que terminariam aqui os efeitos da noite em que Pedro Madrigal morreu, mas pensaríamos errado. A verdade é que, embora Pedro tenha partido antes de os filhos terem hipótese de o conhecer e de se lembrar dele, a sua morte é um fantasma que paira e sufoca a família durante os anos vindouros. Afinal, a perda de alguém que amamos é-nos sempre dolorosa, seja em que contexto for. De mãos dadas com a dor, surge a necessidade de impedir que se volte a passar pelo mesmo, disfarçada de controlo ou de “pulso de ferro”, como, corriqueiramente, podemos chamar à postura de Alma Madrigal. Surge a muralha à volta da nossa vida interna, tal como acontece com a montanha à volta de Encanto.

Os seres humanos são seres resilientes, não é de espantar que tenhamos sobrevivido milénios e desenvolvido de tal maneira que, hoje, sobrepopulamos um planeta à beira da exaustão de recursos. Mas não é só na sobrevivência física que nos mostramos resilientes. Mostramo-nos, também, na sobrevivência emocional, na força com que enfrentamos os maiores desgostos, mesmo que de forma menos adaptativa. Tal como a vela que ilumina nos dias mais escuros, encontramos uma luz onde nos agarrar, algo que nos leve para diante, por vezes deixando grande parte de nós para trás, lá onde dói. A vela que arde é, então, uma lembrança constante do que aconteceu, nunca se apagando, nunca permitindo que se volte atrás nem que se ande para a frente sem ela, uma constante companhia que, não nos deixando ver os monstros no escuro, não nos deixa, também, ver o que de bom pode haver nele.

Alma Madrigal fechou-se no seu casulo com a sua dor imensurável, uma barreira enorme à sua volta que ninguém conseguiria escalar, mesmo a sua família. Encanto e Alma são um. E, à medida que a barreira de Alma começa a quebrar, que o seu pulso de ferro começa a mostrar sinais de ser mais danoso do que protetor, também a montanha à volta de Encanto se parte ao meio e a família desaba por fim. Não nos deixemos enganar, a família Madrigal que conhecemos no início do filme equilibrava-se numa fundação precária, prestes a ruir ao mínimo tremor das placas tectónicas, no entanto, é o contínuo apertar do punho, o aumento da sua força quando vê que o mundo lhe foge ao controlo, que a deita por terra. O controlar excessivo de cada variável para que tudo seja perfeito e não possam ser, nunca mais, a família vulnerável que eram quando chegaram a Encanto permitiu que o seu paraíso, protegido, inalterável e inalcançável, ruísse.

Que bom!

Foi nestas ruínas que a família Madrigal se reconstruiu, não através do controlo, mas sim da cooperação entre todos, do pedir ajuda, do acreditar que o outro pode contribuir para um futuro melhor e seguro. A dor de perder o outro, esta coisa que pulsa dentro de nós e parece consumir-nos de tal maneira que nos questionamos se valerá a pena viver com ela, e o medo de que isso venha a acontecer com outros que amamos são normais e expectáveis num processo de luto, especialmente num de natureza tão traumática como o de Alma Madrigal. É preciso encontrar a cortina que cobre a janela que ilumina o quarto e inutiliza a vela, é preciso encontrar um novo modo de amar depois da perda. Para nosso próprio bem, para que reencontremos o conforto dos braços do outro e a segurança de que, um dia, tudo voltará a estar bem.

Somos um. Numa imensidão de individualidades, somos um só. É com o outro que crescemos e aprendemos. É com o outro que experienciamos dor e sofrimento, mas também é com ele que encontramos a sua cura. Pudéssemos nós acreditar, sempre, que a dependência não é sempre sinónimo de sofrimento e, neste mundo virado para o consumismo e a satisfação rápida de necessidades, de ser “cada um por si”, poupar-nos-íamos a esta epidemia que é a solidão!

“Life doesn’t make any sense without interdependence. We need
each other, and the sooner we learn that, the better for us all.”

Erik Erikson

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