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O período da adolescência é um período marcado por um intenso processo de crescimento psíquico e de remodelação da identidade. Uma das tarefas psicológicas centrais na adolescência é por excelência a construção da autonomia. Todos observamos nesta fase o surgimento de “comportamentos de autonomia” relacionados com a forma de vestir; com as longas horas do adolescente no quarto olhando e sonhando ao espelho, fazendo um trabalho de reconhecimento e reapropriação quotidiana do seu corpo em mudança; as saídas de casa quotidianas ou temporárias; o namoro ou as opções ideológicas. São exemplos de algumas das manifestações mais visíveis.
Acontece que este movimento de autonomização – afectivo e psicológico – só é possível mediante um intenso movimento interno de despedida da infância. O “adeus à infância” acompanhado dos seus lutos e perdas, é fundamental para pôr em marcha o crescimento físico e emocional subjacente a esta fase. Não é assim surpreendente que muitas formas de perturbação na adolescência que, tantas vezes nos chegam à clínica, representem tentativas de parar e/ou reprimir as forças da mudança interna que está em curso.
O crescimento psíquico é uma posição incontornável. Exige mudanças constantes de remodelação identitária. Muitas vezes, o adolescente tem medo dessas mudanças, sente o seu self infantil a ser “esmagado” pela força das transformações físicas e psicológicas; sente-as sobretudo como ameaçadoras dos seus arranjos identitários precários. Acaba por se manter prisioneiro de situações afetivas e relacionais manifestamente insatisfatórias, não promotoras do crescimento, surgindo sintomatologia diversa (ex.: medo da sexualidade, híper-apego à infância, medo da independência adulta, entre outros). Poderemos falar aqui de uma sintomatologia de natureza regressiva, por oposição a um movimento de expansão da mente, tão esperado neste período de vida.
Um parênteses para referir que, ainda que o adolescente nesta fase esteja em evolução psíquica e não em depressão, os sintomas depressivos e ansiosos são inevitáveis durante este período de vida, associados que estão às mudanças e transformações ao nível do corpo, das relações e às flutuações de identidade que as mesmas suscitam (Braconnier, Marcelli, 2000).
O processo de autonomização que acompanha o crescimento adolescente, também pensado como um processo de separação-individuação, não acontece (ou é muito precário) se os vínculos infantis forem frágeis. Por outras palavras, este processo continuo de desenvolvimento e expansão – Individuação, Autonomia e Formação da Identidade – encontra-se estreitamente ancorado à estabilidade das primeiras relações precoces e/ou ao seu fracasso. Os fracassos, as carências graves, as faltas nestas relações, os desencontros repetidos, mas também as relações demasiado simbióticas, representam ameaças ao crescimento psíquico e à consolidação da autonomia. Em contrapartida, a existência de boas relações de objecto precoces, de uma imagem interna de relação tranquilizadora e pacificadora, desenvolverá no adolescente uma capacidade de rêverie, de sonho, de diálogos internos e principalmente uma certa tolerância ao sofrimento e á conflitualidade, elementos verdadeiramente essenciais ao processo de crescimento e autonomização.
Pretende-se aqui reforçar a ideia que, quanto mais os vínculos precoces forem fortes, seguros e de qualidade, mais se encontra facilitado o caminho da individuação, aquisição de um sentimento de self autónomo e com limites bem determinados, acompanhado do abandono dos laços objectais infantis e conquista de relações objectais adultas.
O papel dos pais na adolescência deve ser o de facilitador da autonomização e do crescimento. Ou seja, o de manifestar que não desejam a todo o custo conservar o seu filho, agora adolescente, num eterno estado de infância, mostrando-lhe que, como pais, podem continuar a aconselhá-lo, e que em todo o caso, não o abandonarão perante os seus desejos e ímpetos de afirmação autónoma. Será assim o de favorecer o luto – aqui entendido como processo psicológico de adaptação à perda – tornando o adolescente capaz de aceitar o crescimento (abandono dos privilégios da infância) e desejar “ser grande”, com o que isso implica de responsabilização e de realização pessoal (Fleming, 2001).
Quanto ao adolescente, este tem que se “separar” dos pais, mas esta mesma necessidade fá-lo sentir uma outra ameaça – a de se perder. Paradoxo por excelência da adolescência, que é amenizado pela via do estabelecimento de limites. Por outro lado, o não alcance da autonomia, pode potencialmente fazer emergir a ameaça da depressão, pelo que a reorganização da ligação com os pais é central neste período da vida.
A cúpula do processo de autonomização individual e da despedida da infância é assim o trabalho de luto das figuras parentais. Este é um dos movimentos de separação-individuação emocional mais importantes, organizadores da adultização e do desenvolvimento da auto-afirmação. Consiste no desinvestimento das figuras parentais (figuras protectoras) e na sua desidealização (luto do endeusamento dos pais). O jovem ultrapassa a antiga situação infantil de dependência predominante, em que se regia estritamente por leis ditadas do exterior. Ganha neste processo uma identidade própria e, à boleia do crescimento afectivo, separa-se dos modelos formadores. Investe novas relações, alargando o conhecimento das pessoas, das coisas, dos fenómenos e de si próprio. É a saída dos interesses predominantemente narcísicos que caracterizam a infância, para o desenvolvimento dos interesses sociais, de grupo, que marcam a vida do adulto (Matos, 2010). Neste processo também se dá a mudança do objecto relacional: dos pais, para o par sexual (escolha e investimento do objecto de amor), o que marca definitivamente o evoluir para a maturidade genital e para a emancipação.
É o desejo – como impulso de vida – o principal motor, o guia para o crescimento do adolescente. A depressão e o adoecer psíquico pode instalar-se quando o adolescente “recusa” empenhar-se em tal trabalho psicológico de crescimento e autonomização (referido anteriormente), sejam quais forem os motivos da recusa. Nestas situações o acompanhamento psicoterapêutico actuará como uma almofada psico-afectiva reparadora; uma área segura de encontro e transformação elaborativa, que permitirá a retomada do processo evolutivo do adolescente suspenso, contendo os momentos de sofrimento e de oscilação afectiva sentidos durante a travessia.
Referências Bibliográficas:
Braconnier, Alain; Marcelli Daniel (2000). As Mil Faces da Adolescência. Lisboa: Climepsi Editores.
Fleming, Manuela (2004). Adolescência e Autonomia: O desenvolvimento psicológico e a relação com os pais. Porto: Edições Afrontamento.
Fleming, Manuela (2001). Família e Toxicodependência. Porto: Edições Afrontamento.
Matos, António Coimbra (2002). Adolescência. Lisboa: Climepsi Editores.
Pinto, José Manuel. Um Olhar Psicodinâmico da Psicologia e Outros Olhares.
Strecht, Pedro (2005). Vontade de Ser: Textos sobre Adolescência. Lisboa: Assírio e Alvim.