A Indiferença – Via insidiosa para o colapso

Numa das imensas vezes em que escutei, num passado recente, uma emblemática canção, popularizada, perto do final da década de oitenta, pela mítica banda Pink Floyd – “On The Turning Away”  (cuja tradução poderá incidir em expressões como “Virar as costas” ou, acrescentando algo mais de dimensão subjectiva – que acaba por ser o propósito central desta reflexão – “Virar costas, no intuito de ignorar alguma coisa”) – dei por mim a indagar acerca de uma multiplicidade de mensagens subliminares que a canção encerra. Em concreto, e de modo quase que instantâneo, quem atentar à letra, imerge num panorama paradigmático de disparidade societal, como se o mundo estivesse toldado numa espécie de dissidências várias, entre o sensato e o insano, entre o que poderá ser da ordem da equidade e da desigualdade, justiça e injustiça, bondade e maldade, não obstante, lamentavelmente, a preponderância, em muitos contextos, da “alçada de maior malignidade”. Com efeito, volvidas, quase quatro décadas, desde que a canção surgiu, a mensagem integrante, infelizmente, não perdeu legitimidade, em virtude da loucura mundial a que temos vindo a assistir – no belicismo constante e guerras de poder, sem quaisquer rasgos de compaixão para com o sofrimento de quem, nesses meandros, se vê envolto; no sectarismo societário que se tem vindo a adensar, de forma exuberante; bem como num paradigma de apatia e Indiferença, em que, todos nós, em jeito inexorável e meio que movidos num inconsciente colectivo, acabamos por incorrer, ante este tipo de situações. Passagens da canção como “Don’t accept that what’s happening, Is just a case of others’ suffering, Or you’ll find that you’re joining in The turning away”, aludem, precisamente, a esta ideia, de que não deveremos aceitar o que está a acontecer, sob pena de ampliarmos, indirectamente, a negligência e Indiferença ao sofrimento alheio.

Nesta incursão pela beleza da canção, que acaba por escamotear, ou aligeirar a carga simbólica negativa que lhe subjaz, lembrei-me de interligar esta ideia da preponderância da Indiferença, nos dias actuais, segundo esta perspectiva mais “macroscópica” e de “macro-sistema” (a que a canção apela), a uma visão mais estreita, que eleva o conceito de Indiferença a um patamar de notoriedade, no âmbito da psicopatologia, na medida em que o mesmo se poderá sumariar como uma espécie de aglomerado de factores predisponentes e precipitantes, sob os quais se erguem muitas turbulências emocionais e psicopatológicas. Nesta senda, e tomando em consideração a forma como se estruturam alguns quadros clínicos, nunca será de descartar a inequívoca presença de um referencial prévio de Indiferença, quase como se se tratasse de condição Sine Qua Non para que a condição patológica acabe por emergir, no plano psíquico. Refiro-me a situações muito específicas, ainda que, claro está, as mesmas se possam posicionar no âmbito de um espectro de gravidade, que poderá integrar situações clínicas que vão, desde um quadro de angústia difusa (p.e), passando pelas conjunturas de depressividade, culminando num conjunto muito vincado de evidências sintomáticas, que indiquem a presença de uma estrutura de linhagem mais psicótica (entendendo a Psicose como a parte mais “terminal” do espectro e, portanto, mais grave).

Importará referir, a este ponto, que todas as asserções transmitidas só farão sentido, se não for perdida de vista a Primazia da Relação, na forma como se organiza a nossa vida mental e o mundo interno de cada um de nós. Dito de outro modo, é na qualidade das nossas teias relacionais, desde o momento da concepção, até ao dia em que morremos (com particular destaque para a relação primária, com os nossos cuidadores primordiais – pais e/ou outras figuras de afecto preponderantes), que se alicerçam os nossos traços caracteriais e de personalidade (forma como sentimos, como vivemos as emoções, como agimos, pensamos, etc). Neste sentido e retomando o conceito de Indiferença, facilmente o categorizamos como uma das bases principais para a desorganização psíquica, se entendermos Indiferença como algo que alude, praticamente, à ausência de relação, na verdadeira plenitude que aqui está implícita, como sendo a ausência do olhar atento, que desvenda e, ao mesmo tempo, sossega o outro; a ausência de cuidado – indutora de desamparo – e, por inerência, a incapacidade de fazer sentir o outro amado, etc. De forma quase que irrefutável, sempre que existem episódios cumulativos deste género, ao longo de um período prolongado, onde prevalece o descuido, o desamparo e a agonia dilacerante que fica, como resíduo reprimido dos vividos abandónicos da Indiferença, a predisposição para o adoecimento mental é muitíssimo grande, seja numa relação entre mãe/pai e filho, seja de casal ou de amizade, sendo certo que, quanto mais precocemente esta dialéctica se estabelece, como no caso dos primeiros anos de vida, tendencialmente, mais avassaladoras serão as repercussões psíquicas.

A esta altura, invoco uma passagem da canção: “No more turning away from the coldness inside (…)” – “Não mais virar costas à frieza interior (…)”, como forma de interpelação introspectiva, a cada um de nós e, ainda, na tentativa de transmitir que há redenção e possibilidade de cura ou alívio (em Psicoterapia), para as repercussões da Indiferença, bem como para as organizações psíquicas que a poderão induzir.

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