O Deserto ainda espera dar Flor

As Fases de um Processo Terapêutico

Todos os anos, por esta altura – entre os meses de setembro e novembro – o deserto mais árido do Mundo, o deserto do Atacama no Chile, enche-se das mais belas flores coloridas. É um fenómeno visual belíssimo, que resulta do despertar de sementes adormecidas sob o solo mais seco do Mundo.

Este maravilhoso acontecimento anual é, por si só, um fenómeno inspirador e a sua singularidade poderá servir, quanto a mim, como metáfora e ponto de partida para refletir um pouco sobre a viagem interior que todos precisamos de fazer até à Saúde mental.

A esse propósito, recentemente embrenhei-me na leitura de um livro que testemunha a torrente emocional íntima de uma experiência terapêutica vivida na primeira pessoa. A obra relata em diferentes fases o percurso de renascimento e esperança de uma relação terapêutica bem conseguida, uma travessia desde o deserto afetivo – correspondente a uma vida mental desvitalizada, árida e empobrecida – até à instalação de um processo de mudança relacional e crescimento psíquico, na livre asserção da metáfora: ao tão esperado florescimento de uma vida interior, até aí adoecida.

Chamaremos então a esta viagem terapêutica – do deserto, à flor – uma viagem até ao “eu”.

A decisão de procura da Psicoterapia

É a dor, ou o excesso dela, que nos leva à procura de uma psicoterapia. É também o vazio de si, de outros, de recordações ensolaradas, um presente feito de pouco.

Assim vamos…na busca de uma mão, de uma voz, de um coração que proteja, que acolha e que escute.

”Precisava de me reencontrar comigo mesma, mas no desamparo não havia luz que iluminasse o caminho, estava escuro, precisava de alguém: fui à procura.”

O Encontro

“A esperança no encontro deu-me movimento, a força e o alento para ir”.

O primeiro encontro com o terapeuta desenha os contornos do que se pode esperar, do timbre da relação, do lugar que o outro guarda para nós.  Do lado do terapeuta, o respeitoso silêncio da escuta, de quem guarda espaço para o outro ser e falar, muitas vezes ainda sem palavras.

O espaço do consultório: um lugar que não ostenta, não oprime, antes oferece um lugar a quem entra, acolhedor.

Num momento de imensa dor, em que a vida se esvaí, figurar na agenda do terapeuta é sentido pelo paciente como figurar num espaço interior dele, naquele bocadinho de vida dele. E assim nasce a esperança, ainda que pequena, de que sem a âncora da profunda solidão, seja capaz de se fazer caminho, de iniciar viagem.

O face a face

A sensação de estar sentada no face a face e o encontro de interioridades entre paciente e terapeuta.

Instala-se, habitualmente, nestes primeiros encontros uma sensação de nudez emocional no paciente: sensação de pequenez, de desproteção. A nudez emocional é, por um lado, um grande desejo do paciente, pouco concretizado na sua vida quotidiana, em que este deseja ter relações de maior profundidade e sem escudos. É por outro, simultaneamente temida, emergindo frequentemente o medo da vulnerabilidade.

“Sentia que os lugares frágeis, infantis, os lugares de dificuldade ficavam mais à superfície…era como deixar o caminho livre para a emergência das partes mais frágeis, embrionárias, incipientes. Dói deixa-las vir ao de cima, mas era esse o caminho. Era estranho assumir claramente a necessidade de ajuda, de precisar do outro. É um misto de medo e esperança”

E que medo é este? Que esperança é esta?

 “O medo também de ver na terapia repetido o que era a sua experiência de vida: as ausências, a falta de lugar para si e, por outro lado, a esperança de poder ser diferente, de encontrar diferentes trilhos, outros desenhos de relação.”

O Apego

“Desejava e temia ao mesmo tempo o apego. Imaginar-se ali numa relação boa, acendia-lhe o temor de a perder e aí ficava muitas vezes impávida, perante a possibilidade de se ligar ou se afastar, evitando o medo, o medo da perda que o ligar-se poderia trazer consigo”

O terapeuta dará os sinais de confiança necessários para o paciente se aventurar na aproximação que uma relação pressupõe.

“Cada vez mais estava segura da ligação, da qualidade e da consistência da relação. Ele (o terapeuta) estava sempre lá, não a esquecia e em muitas sessões ela ficava com a sensação de que algo de bom lhe era acrescentado, ou revelado.” E ele (terapeuta) deu-lhe um brilho – as palavras do terapeuta e os seus silêncios foram-lhe mostrando que o seu lado baço e desvalido era também ela, e que ela não era para se deitar fora. Existia um lado valioso, que precisava de mais espaço, de mais luminosidade, de liberdade para se usar em pleno. Um bem para se usufruir e alentar.”

“Sentia-se a renascer um pouco. Não se nasce nem renasce sozinho”.

A Dor e o Desespero

 “A dor imensa e intolerável habitava-a. Eram golfadas de dor que a rebentavam por dentro, sentia-se dilacerada, ia-se morrendo. E a solidão destes momentos era tanta, que o dia da psicoterapia era sentido como o dia em que alguém esperava por ela, em que alguém tinha espaço para ela. Eram o espaço, a presença, que eram como os contornos da relação e também a interioridade desse espaço que a iam mantendo à tona de água. “

O caminho que o terapeuta fazia até ela era sempre um experienciar que era fonte de conforto, que lhe amansava a dor. Também a disponibilidade para lê-la, perceber o seu sentir, mesmo em zonas de difícil acesso.

“Sentir-se acompanhada neste caminho, nestes abismos, nestes desconhecidos, era sentido por ela como um abraço, como ela valer a pena.”

O Tempo

O tempo das sessões era como se desenhasse o limite, do fora e do dentro, do fora e do dentro da relação, da existência no dentro e no fora dessa mesma relação.

 “Durante muito tempo fez muito frio lá fora, muito frio. Mas o que trazia do dentro aqueci-a ao luar, nas noites frias. Com o tempo descobriu que o tempo perdura dentro de si, no seu interior, mesmo quando parecia chegada à hora de acabar a sessão.”

“Aquele tempo que no início da relação terapêutica, tanto a ocupou em sentimentos contraditórios foi esculpindo, definindo o dentro e o fora – delimitando muitas coisas para além de si próprio – pelo que passou a simbolizar. Os limites da relação iam sendo esculpidos, ela existia, o fora da relação já não a dissolvia no nada”.

A ausência do Terapeuta (tempo de férias)

“Retomava um medo que não sabia onde nascera. O de que o seu terapeuta, também ele se virasse para si próprio e a deixasse de fora, a largasse, ficando ela – mais uma vez – no meio de uma rua desértica, onde o lado dela, era do lado de fora das portas das casas.  Numa espera vã que elas um dia se abrissem, anunciando um lugar para ela do lado de dentro”.

Com o passar do tempo com o contruir da relação, esta angústia diminui pela possibilidade de o paciente trazer dentro o terapeuta consigo, de ele ficar a povoá-la (os ecos das suas palavras, dos seus gestos e afectos).

“Também porque ele sempre voltava, porque ele não a esquecia, porque ele não se desencontrava dela nessas viagens. Há ausências que não são abandonos, são passagens.”

O Desamparo

 “Os episódios de retirada, de ausência que lhe ofereciam pessoas de quem muito gostava, deixavam-na quase numa incapacidade de viver, como se esses abandonos lhe falassem da porcaria que tinha em si, do quanto esta vida não tinha morada para ela, do quanto o único lugar que poderia ocupar era o do albergar da violência e da crueldade que o abandono encena.”

“Sentia-se queimada, à sua volta nenhum olhar, nenhuma presença. Sentia-se deitada fora , sentada num vão de escada, numa espera gélida de quem não vinha.”

O desamparo é talvez umas das feridas mais difíceis de tocar, não há lá memórias, apenas o enorme vazio. O espaço da terapia e da relação são sentidos pelos pacientes como um útero, um mergulho num soro protector, onde o sofrimento se aquieta e onde a pele queimada, alma queimada, se vai reconstituindo e restaurando.

“Na terapia encontrava o olhar, o encontro e o aconchego da compreensão. Ali sentia-se abrigada, segura, numa relação que não a vomitava, com um terapeuta que ia ao encontro dela…ela já não estava só, estava viva para alguém, existia para esse alguém, encontrara abrigo.”

O Lado de Lá do Espelho

“Um dia encontrou outro espelho, muito diferente do seu. A primeira vez que o observou reparou que tinha sempre reflexo, que tinha sempre luz, e quando se olhou nele, a medo, ele mostrava-a outra, mais bem-fadada, mais talentosa, mais afortunada, nunca de mãos vazias ou de alma despovoada.”

“Embora ainda baça, começava a despontar, pintava-se de si num novo retrato, aprendia ali uma nova representação de si”.

A (Des)ilusão

“Foi muito doloroso olhar o deserto onde sempre morava, mas agora que já não estava só, podia olhá-lo, contemplá-lo e guardar tudo o que lhe contava de si. Quis finalmente sair desse lugar onde não estava ninguém. Agora que sabia ser merecedora de uma boa relação, viva, criadora, era a esperança que despontava; vislumbrava-se uma fenda de luz, havia caminho para a frente”.

A Existência

Os pacientes relatam a existência de muitas relações que os deixam no vazio, transparentes, quase sem existência.

“Esse estar vazio de outros ia-a tornando transparente, desvitalizada, como se esse lugar fosse um sinal de desvalor, de não legitimidade de poder ser. “

A relação que vivia na psicoterapia tinha-lhe trazido um lugar, tinha-lhe dado um lugar, um lugar dela. Ali não ficava fora de portas. E com esse lugar, com existência na compreensão do seu terapeuta, ia ficando menos morta, menos transparente, ia colorindo lados seus. Na terapia poderia ser, cada vez mais. E podia alimentar a esperança que pudessem haver lugares na terra e no céu ainda não fechados para si, lugares onde pudesse ser cada vez mais, sem que isso lhe trouxesse a solidão, o abandono.

A Nova Relação

Subir as escadas na direção do consultório do seu terapeuta era um caminho lento e pousado de que precisava para entrar naquele seu novo mundo, aquele onde começava a ver-se outra, a sentir-se outra.

Uma nova pessoa começava a alvorecer, aqueles lugares sempre seus que estiveram silenciosos, começavam a raiar, a ganhar luz, a ganhar força; iniciara na quentura daquela relação psicoterapêutica uma transformação, o renascer de lugares seus que nunca reconhecera. O terapeuta foi-lhe trazendo à mão todos os tesouros que eram dela e estavam fundeados e encobertos.

Agora que encontrara um lugar ali dentro, agora que fora encontrada, já não era dentro dos outros que se sentia viva, já não se sentia morrendo sempre que os outros a abortavam, incapazes de a guardar, porque já não era neles a sua morada. A sua morada era ela própria.

Bibliografia:

Saraiva, Maria João (2011). Até mim: Vivência da
Psicanálise. Lisboa: Trilhos Editora.

 

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