Quando Os Humanos Sonham Com Ovelhas Elétricas

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“Será que os androides sonham com ovelhas elétricas?” (título original: “Do androids dream of electric sheep?”) é um clássico literário de ficção científica de Philip K. Dick, publicado em 1968, e que inspirou o filme “Blade Runner”. Retratando um mundo distópico transumanista, incita-nos a refletirmos sobre o que é ser-se humano.

A história passa-se numa Terra em ruínas, devastada por uma guerra mundial e coberta de poeiras radioativas. A maioria dos humanos emigrou para colónias espaciais, todos os animais estão em perigo de extinção e há androides altamente sofisticados. O protagonista é Rick Deckard, humano (embora muitas vezes não o pareça), caçador de androides, que sonha em obter um animal vivo (derradeiro símbolo de status social) que substitua o seu carneiro elétrico.

Neste mundo sombrio, homem e máquina confundem-se. A linha que diferencia o real da simulação, o genuíno do artificial, o verdadeiro do falso esbate-se. Os humanos são apáticos, mecanizados, vivem alienados e extremamente dependentes de artifícios tecnológicos. Os androides são criados com memórias e identidades falsas, e desenhados para se assemelharam o mais possível aos humanos. É, assim, um mundo de crise identitária, onde a noção do que é autêntico se perdeu, tema que aliás me parece bastante atual.

No início da história, Rick apresenta-nos o “órgão de estado de espírito”, aparelho que permite programar artificialmente estados emocionais. Rick usa-o para otimizar o seu humor e ter uma atitude profissional de negócios. Ligado ao órgão, desliga-se das suas verdadeiras emoções. Já Iran, a sua mulher, que um dia ousou desligar a tv para ouvir o silêncio dos apartamentos desabitados e da decadência do mundo, programa mensalmente 6 horas de depressão, numa busca por uma experiência emocional mais verdadeira, ainda que também artificial. Segue-se uma discussão entre o casal, que chega até a ser cómica, com Rick, escandalizado com a programação de Iran, a sugerir diversos programas alienadores, nomeadamente o absurdo programa para ter vontade de marcar programas.

Recentemente, dei por mim a associar este “órgão de estado de espírito” ao conceito de falso self, introduzido na psicanálise por Winnicott (1960). Como se este órgão pudesse servir de uma metáfora sonhada para tal conceito, como se se tratasse de uma espécie de tecnologia facilitadora do falso self.

Partindo de um caso clínico de uma mulher que tinha a sensação de nunca ter começado a existir, Winnicott (1960) apresenta-nos o falso self como uma parte do self inautêntica, orientada para o exterior, para o socialmente esperado. Em contraste, o verdadeiro self é a parte central do self, autêntica e sentida como real.

Existem diferentes graus de falso self. Partindo da normalidade, cada pessoa tem um self privado que não é acessível fora de espaços de intimidade e um self polido e amável necessário para o bem da convivência social, que implica conciliações. Porém, perante questões cruciais, o verdadeiro self é capaz de se sobrepor, permitindo à pessoa um existir autêntico e criativo.

O lado patológico é marcado pela profundidade da clivagem do self, caracterizando-se pela utilização excessiva do falso self, com um enorme sacrifício da genuinidade. Passa pelos casos de vivência de uma vida secreta/dupla e tem no seu extremo casos em que o falso self é instaurado como única realidade. A pessoa real inteira é confundida pela máscara artificial que usa, tanto pelos outros, como por ela própria.

A origem deste falso self remota para as primeiras relações, marcadas por falhas repetidas do ambiente/mãe/cuidador em dar uma resposta sintónica aos gestos espontâneos do bebé, interrompendo a sensação de continuidade de ser. Esta experiência força uma falsa existência submissa que sacrifica uma identidade verdadeira em nome da procura de aprovação e amor. A formação precoce do falso self surge então como uma defesa que mantém o mundo à distância, com a função de ocultar e proteger o verdadeiro self do ambiente.

No entanto, traz grandes custos ao sujeito, pois não permite a construção de relações verdadeiras, nem o bom uso da agressividade e, ainda que possa ser tão sofisticado que aparente ser real, nunca permitirá à pessoa começar a existir como ela própria. Nunca atinge a sensação de se estar vivo, pelo contrário, faz-se acompanhar de uma sensação de irrealidade e sentimento de futilidade. Nestes casos, a experiência psicoterapêutica, através da relação humana, pode ser o caminho de acesso ao verdadeiro self e de encontro com a sensação de se estar vivo.

Irrealidade e futilidade caracterizam bem a atmosfera de “Será que os androides sonham com ovelhas elétricas”. Rick veste a máscara do caçador de androides, racional, pragmática e de distanciamento emocional, como se agisse como uma máquina, de tal forma que nos faz questionar acerca da sua humanidade. Porém, a jornada de Rick é a de questionamento da sua verdadeira identidade. A sua busca incessante por um animal de estimação real reflete bem a sua ânsia em encontrar uma ligação autêntica e a sensação de se estar vivo.

Regressando ao presente, questiono: Não serão irrealidade e futilidade também aspetos que caracterizam bem a sociedade atual? Não estará o mundo cada vez mais incitado a habitar-se de androides disfarçados de humanos (falsos-self)?

A modernidade sem dúvida coloca novos desafios à vivência autêntica. Vivemos num mundo acelerado, o avanço tecnológico é vertiginoso, a cultura assenta no consumismo excessivo e a imagem ocupa um lugar central, alimentando esta ideia de que parecer é igual a ser. Este ritmo desenfreado reflete uma perda de significados e de capacidades de estar só, de pensar, de se ser criativo e de conviver com as diferenças. Parece-me imperativo que não deixemos morrer por completo o que faz de nós humanos e o que torna cada um de nós singular e autêntico.

Termino com uma frase que guardei na memória, de uma amiga numa conversa recente: “eu quero viver num sítio onde as pessoas possam discordar, onde possa ser verdadeira”.

Imagem:

Pintura de Amadis Dudu (2020). Masters of disguise [Acrílico sobre tela].

Referência:

Winnicott, D. W. (1960). Ego Distortion in Terms of True and False Self. Em D. W. Winnicott, The Maturational Processes and the Facilitating Environment: Studies in the Theory of Emotional Development (pp. 140-152). London: Karnac Books.

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