Artigo por
“Eu, criança eterna— Eu sacrifiquei-me pelos outros…
Egon Schiele
Que olharam, mas não me viram…” (tradução livre).
Egon Schiele (1890-1918) foi um pintor expressionista austríaco. Ficou conhecido pelo seu estilo original, entre a melancolia e a provocação, que tanto repele e perturba, como atrai magneticamente quem se depara com a sua obra. Nos seus quadros encontramos figuras distorcidas, em poses bizarras e tensas, corpos nus, sexualidade, emoções intensas, vida, morte, autorretratos.
Grande parte da sua obra é considerada autobiográfica e reveladora dos seus conflitos internos. Ao mergulhar em tamanha riqueza, deparei-me com o desafio de selecionar e resumir material para evitar uma análise muito longa. Contudo, espero despertar no/a leitor/a interesse em descobrir por conta própria o que fica além do aqui escrito.
Para que possamos pintar um contexto que melhor ajude a compreender a sua obra, há que revisitar eventos potencialmente traumáticos e perturbadores da infância de Schiele. Cresceu sob uma atmosfera de doença e morte. A sífilis contraída pelo pai provocou a morte de 4 irmãos de Schiele e, aos 14 anos do pintor, a do próprio pai. Os últimos 3 anos de vida do pai foram marcados por grande deterioração física e mental, que perturbou profundamente a família.
A relação com a mãe pautou-se por grande ambivalência. De acordo com declarações dela e de Schiele, que tantas vezes a acusou de falta de compreensão e amor, podemos inferir que a mãe, dominada pela dor de toda a tragédia que assolou a família, estava naturalmente demasiado deprimida para poder prestar os cuidados afetivos necessários para a nutrição da vinculação e integração do self. A história de Schiele reflete, assim, a sua definição de vida: uma desintegração contínua.
Na obra do artista, encontramos uma série de alegorias, onde reflete sobre o ciclo da vida, com vida e morte repetidamente entrelaçadas. Em 1910, pinta Mãe Morta I (ver imagem), que o próprio considera um dos seus quadros mais importantes. Nele vemos 2 figuras num fundo negro: uma mãe cadavérica, de rosto e mão ossudos, olhos vazios, inclinada sobre um bebé vivo, preso dentro do saco amniótico.
Este tema é recorrente em várias das suas pinturas, retratado por mães mortas, cegas, de olhar triste, amarguradas e desconectadas. São pinturas altamente impregnadas por vivências dolorosas da infância.
Mãe morta é um conceito psicanalítico de André Green (1986). Não se refere à perda real da mãe, mas antes ao imago formado na mente da criança que experienciou a perda do cuidado materno afetivo e emocional. Uma mãe que, ainda que fisicamente viva e funcional, está demasiado deprimida, deixando a criança emocionalmente desamparada. Uma mãe que não consegue olhar a criança e servir de espelho, onde esta se possa ver refletida, tal como definiu Winnicott (1971). Curiosamente, o espelho que Schiele usava para criar os seus autorretratos e que transportava para onde quer que fosse, tinha pertencido à sua mãe e, de certa forma, tornou-se substituto dela.
A sombra da mãe morta estabelece um padrão de falhas ambientais, marcado pelo sentimento de uma catastrófica perda de amor e significado, pois a criança não dispõe de qualquer explicação para o que (não) aconteceu. No lugar de um objeto materno securizante, internaliza-se um vazio de mãe. Fica impressa uma figura fria, inanimada e inacessível emocionalmente. Desta vivência resultam crianças deprimidas, por vezes com a depressão encoberta por uma hiperatividade reativa.
Este vazio emocional continuará a acompanhá-las em adultas. O self esburacado é vulnerável ao estabelecimento de relações afetivas saudáveis e íntimas. Serão, compreensivelmente, adultos com dificuldades ao nível da capacidade de amar, ambivalentes acerca da intimidade e frequentemente apresentarão dificuldade em se sentirem vivos.
Nestes casos, é possível transformar esta construção psíquica, através de um processo psicoterapêutico, onde o terapeuta poderá ajudar o paciente a refletir e simbolizar estas experiências dolorosas e, assim, devolver-lhe a possibilidade de confiar. É um trabalho conjunto de criação de um sobrevivente fortalecido e capaz de abraçar a vida.
Voltando a Schiele, interessa ainda refletir acerca do ato repetitivo de pintar o doloroso (des)encontro com a mãe morta. A psicanálise ensina-nos que o que é repetido precisa de ser resolvido. Talvez Schiele pintasse repetidamente a mãe morta numa tentativa de transformar a sua experiência vivida passivamente, controlando-a através da sua arte. Nestas pinturas revivencia esta situação ativamente, fazendo do espetador testemunha, numa busca por ligações internas para o sentido perdido.
Em 1918, Schiele e a sua esposa grávida, Edith, morrem de gripe espanhola. Neste último ano da sua curta vida, deixa-nos A família, pintura inacabada, de composição mais equilibrada, que reflete amadurecimento artístico. Destaca-se das suas obras anteriores, por carecer da típica angústia agonizante, representando uma cena serena, com contornos mais suaves. Encontramos 3 figuras que, ainda que possam transmitir algum distanciamento percebido pelos olhares, estão vivas e saudáveis: pai nu (Schiele), mãe nua (Edith) e uma criança. O corpo de Schiele acolhe a família, evocando-nos um invólucro intrauterino. A criança olha para cima, num vislumbre de esperança. E, assim, Schiele se transforma, de filho-bebé preso pela mãe morta a homem-amante capaz de se autonomizar e criar a própria família.
Schiele deixou-nos uma obra vasta de mais de 3500 trabalhos, muitos dos quais autorretratos que imortalizam a sua imagem em eterno reflexo. Knafo (2012), numa análise biográfica e psicológica do artista, descreve este ato criativo final como a recriação do nascimento. Através das suas pinturas, Schiele dá à luz um self que pode ser visto e que dificilmente não cativará profundamente os seus espetadores.
Imagem: Egon Schiele. (1910). Mãe Morta I (nome original: Tote Mutter I). [Óleo e lápis sobre madeira]. Leopold Museum, Viena, Aústria. (foto de Rute Lopes)
Referências:
Green, A. (1986). The dead mother. Em On private madness. London: Hogarth Press.
Knafo, D. (2012). Egon Schiele: A self in creation. Em Dancing with the unconscious: the art of psychoanalysis and the psychoanalysis of art. New York: Routledge.
Winnicott, D. W. (1971). Mirror-role of mother and family in child development. Em Playing and reality. London: Tavistock.